sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Reformas ou Revoluções (I)

Existem acontecimentos que a história regista como revoluções mas que na realidade nunca passaram de simples mudança de protagonistas do processo social e da ideologia que os justifica. E, no pólo oposto, há iniciativas que são propostas e apresentadas como meras reformas mas que correspondem ou implicam autênticas revoluções. Na actualidade nacional é isso que a meu ver se passa com a reforma do sistema de ensino. Vamos a ver se consigo explicar por que o afirmo a partir da polémica em torno da avaliação dos professores.

A panóplia de acepções do conceito de avaliação poderá com alguma segurança ser sintetizada com recurso a duas noções que lhe estão associadas: objectivo e medida. Ou seja, de uma forma geral avaliar é tentar estabelecer uma medida que dê ideia da realização de objectivos estabelecidos em função de um normativo qualquer. Mas, com que interesse ? Duplo: hierarquizar e corrigir. Hierarquizar a realidade em função de um critério valorativo e corrigir os processos de persecução dos objectivos ou os próprios objectivos em si. Portanto, a boa avaliação, não se limita a pretender separar o trigo do joio. Ela pretende também a melhoria do processo que conduz a essa separação. E no limite, pode, inclusive, ajudar a determinar se a separação se justifica.

No quotidiano, avaliar tornou-se tão natural como respirar. É isso que fazemos quando escolhemos entre duas peças de vestuário, entre duas carreiras de autocarro ou entre dois restaurantes. E todos sabemos que para o mesmo objectivo, seja vestir, viajar ou jantar, os critérios de avaliação que usamos mudam no tempo e com as circunstancias, bastando para isso que se altere o nosso padrão de exigência, a nossa disponibilidade financeira ou o humor da companhia . Portanto, avaliar serve um terceiro propósito: compatibilizar. Isto é, procurar o melhor equilíbrio entre o desejável e o possível. E esse principio é igualmente válido na nossa vida privada como no funcionamento das instituições em redor das quais se organiza a nossa vida social.

No entanto, entre as nossas avaliações pessoais e a avaliação institucional, existe uma diferença importante: enquanto na primeira somos nós os avaliadores, na segunda passamos a avaliados. Ou seja, altera-se a perspectiva do critério de utilidade. No primeiro caso somos nós quem questiona a utilidade do que nos rodeia; no segundo é a nossa utilidade que é ponderada.

A utilidade social do individuo é uma daquelas polémicas que estará sempre inesgotada. Por agora contorno-a recorrendo ao chavão de que somos criaturas sociais e portanto a vida em comunidade é algo inerente à nossa existência. Ora a existência de uma sociedade implica sempre algum tipo de contributo para o conjunto, e nas sociedades mais sofisticadas a especialização de tarefas e a troca dos respectivos serviços são mesmo a situação corrente, pelo que se torna inevitável que o desempenho de cada um esteja em permanente escrutínio. Ácontece que desse escrutínio resulta a sobrevivência dos “mais aptos” ( lato senso e com todas as aspas que quiserem ) e o eterno problema da inclusão dos “menos aptos”.

O facto de terem sido reconhecidos ( e bem ) inaceitáveis deficits de equidade dos critérios de estratificação convencionais, desaguou para já na modernidade democrática, cujo contrato social contempla a igualdade entre indivíduos como principio e o progresso como objectivo. Mas uma coisa é a equidade como principio, o direito a tratamento não discriminatório perante a lei, no acesso à educação, à saúde ou ao que quer que seja. Outra, bem distinta, deduzir do direito à equidade que todos temos um potencial equitativo de desempenho em qualquer que seja o contributo social que nos seja solicitado para o tal progresso em democracia a que estamos contratualmente obrigados. Ora não é assim. Nem tudo se educa ou aprende do mesmo modo e há características inatas e outras de personalidade que tornam uns mais capazes que outros para tarefas concretas. Contudo, e por estranho que possa parecer, embora toda a gente conviva pacificamente com esse facto quando se aplica à utilidade do outro, seja ele o ministro ou o pedreiro, em culturas como a nossa são poucos os de nós que estão disponíveis para o aceitar quando se aplica à utilidade da nossa excelsa pessoa. E quando essa atitude está tão bem incorporada que faz parte da nossa própria identidade, qualquer medida que se assemelhe a questioná-la e a alterar práticas igualitaristas, não é uma reforma, mas uma revolução cultural descontextualizada.

Bons amigos que tenho a sorte de contar entre a classe docente, têm-me feito chegar ecos do surpreendente ( até para os próprios ) unanimismo na reacção ás reformas introduzidas no sistema . No entanto, quando solicitados para expor os argumentos em que se apoiam na sua contestação, os que usam são de uma tal fragilidade e incoerência que autorizam a ilação de que as objecções de facto nada têm a ver com um modelo de avaliação concreto, qualquer que ele seja, mas com uma muito mais complexa conflitualidade intrínseca com o exercício da cidadania em contexto democrático-progressista. Naturalmente, terei que regressar ao tema.

4 comentários:

antonio ganhão disse...

Já tinha saudades deste papel de assessor da ministra!

Naturalmente que é preciso voltar ao tema. Os professores deviam de saber que não se combate uma ideia com a sua negação, mas com uma ideia nova.

Retomou funções Manuel?

Tiago R Cardoso disse...

interessante...

De facto a nossa sociedade vive de avalições, nós gostamos de avaliar mas não gostamos de ser avaliados.

Quer dizer até aceitamos se essa availação for positiva.

Se somos avaliados deviam ao menos informar como vai ser e a quem nos avalia como deve ser feita.

Isso agora é menos relevante já que tudo foi simplificado... pois.

alf disse...

Manuel, há uns professores que já deixaram de me falar por causa disto...

Os sistemas, ao longo do tempo, vão sendo abastardados pelos interessados nele. E, reformar é essencialmente voltar a pôr as coisas direitas.

A Justiça é o que é porque é o que convém aos interesses particulares da maioria dos juizes, idem com o ensino e com a saude. (as últimas que eu tenho sabido de alguns médicos...)

Por isso é que as reformas nunca podem ser feitas por negociação com os interessados - o que lhes interessa é que o sistema que eles moldaram não seja alterado.

O grande erro feito na educação e na justiça é envolver os interessados no assunto.

O ME devia ter escolhido um dos modelos em vigor noutro qq pais, talvez o francês seja o mais adequado à nossa realidade, e a seguir impô-lo.

Que constestação seria então possível? Se ele serve em França, porque não há de servir cá?

O mesmo tem de ser feito com a Justiça. Enquanto andarem em negociações não irão a lado nenhum. Entendo perfeitamente o desabafo da MFL; apenas, em vez da palavra «democracia», deveria ter usado a palavra «negociação». Porque esta negociação é que é antidemocrática - as pessoas escolheram um governo para governar o pais, não para andar a fazer negociações com interesses particulares - sejam eles de empreiteiros, banqueiros ou classes profissionais.

E em todas estas discussões parece que toda a gente se esquece de notar que temos o pior ensino da europa civilizada com professores dos mais bem pagos; e que isto não pode continuar assim porque o futuro não é compatível com qq taxa de abandono escolar, quanto mais a nossa taxa astronómica. Claro que a responsabilidade não é só dos professores; mas também é.

PS -
Notem que os professores não são melhores nem piores que as outras pessoas, são iguais a todos os outros. Na função publica não houve esta contestação ao sistema de avaliação porque não houve negociação. O problema aqui foi haver negociação.

O seu post é uma obra de arte! Magnificamente construído.

Manuel Rocha disse...

António,

As noites agora são mais
longas...:)

Tiago,

Julgo que essa nossa tendencia que bem refere ou se deve a uma manifesta dificuldade de auto-avaliação. E das duas uma: ou ela decorre duma auto-estima exarcebada ou de uma insegurança incontornável.

Alf,

Somos ingénuos ? Duvida que se o modelo proposto fosse Francês não estariamos agora a ouvir isso mesmo como argumento, que não era adaptado à nossa realidade ??