quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como um balão furado

Há nas proliferas explicações para a dita crise do sistema financeiro alguns aspectos que tendem a ser escamoteados num exercício de negacionismo revelador. No topo desta lista coloco a natureza do próprio sistema económico. Assumi-lo como centro da discussão implicaria reduzir as questões financeiras à magnifica simplicidade dos seus fundamentos económicos. Ora isso iria deixar desarmados e sem emprego todos os “magos da finança” . De facto são eles que, não encontrando outra forma de justificar a existência senão complicando o que é simples para desse modo se substituírem a uma realidade óbvia, se instalaram como mediadores para uma ficção cuja suposta complexidade foi arquitectada como instrumento de controlo e de exercício do poder.

Contrariamente ao que se pretende fazer crer, a economia não tem nada de complicado. Ela resume-se ao modo como nós particulares e nós sociedades gerimos os recursos que são necessários à nossa subsistência. É verdade que a partir de um momento qualquer cuja localização no tempo ou no espaço é irrelevante para esta arenga, decidimos que subsistir era pouco. Vai daí que estabeleceu-se o progresso como desígnio que se auto-define em critérios de bem-estar que na prática se têm traduzido principalmente em ter mais de tudo: mais casas, mais carros, mais estradas, mais roupa, mais alimentos, e, claro, mais dinheiro como símbolo da capacidade de conseguir mais de tudo isso. Neste processo ideológico, em que o new-deal foi um importante marco, o valor simbólico do dinheiro desligou-se da realidade adquirida para passar a exprimir a realidade expectável.

Assim, ao contrário do que era uso no tempo da economia dos nossos avós, em que só se faziam as despesas depois de obtidas as receitas, a modernidade faz as despesas na expectativa de receitas que ainda não aconteceram. Desta forma, em lugar de se centrar na troca de bens ou dos seus equivalentes simbólicos, a economia resvalou para a troca de expectativas. Esta mudança de atitude permitiu uma coisa muito interessante, sem dúvida, que é a possibilidade de usufruir já daquilo que em condições normais só se poderia adquirir daqui a não sei quanto tempo. Uma vez institucionalizado este novo principio de funcionamento, logo proliferaram as entidades especializadas na gestão de expectativas - os bancos. Mas enquanto os tradicionais emprestavam um chouriço a troco da garantia de um porco inteiro, os modernos avançam logo com o porco na crença de que com tanta gente a retribuir-lhes chouriços o risco associado à probabilidade de que uma quantia significativa de devedores falhe o seu tributo é bastante aceitável face ao enorme atractivo que constitui no curto prazo a disponibilidade de enormes fluxos monetárias para a prática especulativa. Deste modo o sistema bancário assegurou a mutação da economia real nas suas variantes de ficção, ou seja, transformou a nossa capacidade real de produzir e com produção gerar riqueza utilizável, na atraente ilusão de que a temos assegurada ainda antes de ter sido produzida.

Para que a gestão desta delicada ilusão se mantenha sem sobressaltos de maior, existe uma dupla premissa essencial: a de que a roda das expectativas não só não pare de girar como a de que enquanto gira não pare de crescer. Ou seja, um sistema que tem no consumo o seu motor, no crédito o respectivo combustível e na abundância ilimitada e universal o paradigma de referência, precisa de acreditar na possibilidade de crescimento ilimitado da riqueza com uma atitude de fé dogmática, pois sem ele nada disto funcionaria.

No entanto a abundância tem limites. Eu sei que é difícil de encaixar mas é assim mesmo. Esses limites são estabelecidos por recursos materiais concretos, pela capacidade tecnológica de os processar e pelo número de utentes potenciais. Além disso a gestão desses recursos obedece a leis tão universais como as da termodinâmica ou a dos rendimentos decrescentes. Esta em particular reza que existe um momento a partir do qual o acréscimo de resultados que se obtêm de um processo se torna inversamente proporcional à quantidade de recursos que nele se investe. Ou seja, numa parcela de terreno de dimensões definidas, há um momento a partir do qual por unidade de trabalho a mais que nele invista num determinado cultivo, já obtenho menos de uma unidade de produto. Chama-se a isto rentabilidade marginal negativa e é uma característica dos sistemas produtivos que só não é mais evidente porque os fluxos económicos tendem a ser medidos em moeda. Quer dizer, exprimem-se através da artificialidade de padrões monetários que não são realmente comparáveis entre si, em lugar de se contabilizarem numa unidade de medida facilmente padronizável como seria a energia, por exemplo.

De facto, qualquer pessoa em bom estado de saúde mental recusaria sempre a troca directa de um pão de quilo por um de meio quilo, pois seria sempre um óbvio mau negócio.Porquê ? Porque existe nessa troca uma óbvia desproporção dos respectivos valores energéticos. No entanto é frequente que a mesma pessoa não hesite em pagar pelo pão de meio quilo mais do que pagaria pelo de quilo, bastando para isso que o primeiro seja promovido como “pão de marca”. Ou seja, a economia descolou dos sistemas de troca em contexto de satisfação de necessidades bem padronizadas para se estabelecer em redor de critérios de equivalência que incorporam factores subjectivos cujo gestão foi entregue ao “deus mercado”. Desta “sofisticação” do homo economicus não adviria mal de maior ao mundo se esta dinâmica não se tivesse globalizado a reboque do recurso ao efémero, ou melhor dizendo, do abuso de um fabuloso recurso energético que ajudou a criar uma ilusão complementar de riqueza e instalou um modelo social que além de artificial é insustentável porque há muito que funciona assente em actividades de rentabilidade marginal negativa. Por isso a prosperidade desta economia tal como a conhecemos é um balão cheio de gás. Concretamente, um balão cheio do CO2 resultante da queima de combustíveis fósseis. De consistente ela não tem mais substância que a matéria de que é feito o balão. É isso que se vê quando ele se esvazia ao mínimo percalço deixando a nu a extraordinária mistificação da suposta solidez do sistema, que afinal se resume a expectativas a flutuar no que ainda sobra de um antigo lago de petróleo.
Link para um texto de quem também não gosta de complicar o que é simples.

7 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro, fossem todos os "talking heads" que nos bombardeiam na televisão, na rádio e nos jornais com o seu "economês" tão claros e cristalinos como aqui foi, e se calhar muitos já tinham percebido algumas coisas.

De qualquer modo, algumas são tão evidentes que presumo que só mesmo a cupidez e a preguiça mental os impeçam de ver o óbvio!

Anónimo disse...

Subscrevo comentário anterior. Acrescento nota para originalidade da abordagen e perspicácia da , fundamentação.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

antonio ganhão disse...

Leio sempe estes textos com grande expectativa e o resultado sempre mais seguro do que apostar na bolsa...

Anónimo disse...

Não posso estar mais de acordo.
Claro que à ortodoxia neo-liberal reinante, bem como para certa nomeklatura académica, é doloroso aceitar as explicações simples. Para estes falar de economia sem uma única fórmula matemática nem recurso a anglicismos é heresia. Como se a realidade fosse determinada pela matemática e como se esta não servisse apenas para tentar reproduzir-lhe o funcionamento.
Parabéns pelo texto e pelo blogue. Fiquei cliente.

Anónimo disse...

Quando o Manuel fala em "rentabilidade marginal negativa" suponho que está a pensa-la em termos de energia...

Se estou enganada, agradeço que me esclareça.

Ah, e está muito bom o seu texto, mas isso já é rotina.

Matilde

alf disse...

Mais um estimulante post.

Eu penso que há aqui dois processos; um é a questão do subprime, do dinheiro baseado nas expectativas, que o Manuel tão bem expôs; outro é a questão da bolsa que, para mim, trata-se dum mini-estoiro daquilo que a bolsa se tornou: uma espécie de esquema de piramide, que estoira sempre que o dinheiro que entra diminui - valeu agora o Estado (nós!!) ir a correr meter dinheiro na «pirâmide», mas isto vai voltar a suceder em breve se as regras não forem mesmo alteradas.

joshua disse...

Manuel, acompanhei com prazer o teu raciocínio e segui o link e é curioso como a palavra 'subjectivo' serve para resumidamente caracterizar uma das principais faces e razões para este 'estado da moeda', para usar uma imagem: o valor simbólico das coisas, dos bens, trouxe um problema de equivalência substantiva à sua efectiva existência.

O meu livro só será um hit se essa ideia de alto valor simbólico se propagar graças à fabricação de uma subjectividade consensual pela indústria do símbolo e do valor símbólico. Tudo é então marketing e a troca do certo pelo incerto, complicando o que é simples.

«Desta “sofisticação” do homo economicus não adviria mal de maior ao mundo se esta dinâmica não se tivesse globalizado a reboque do recurso ao efémero, ou melhor dizendo, do abuso de um fabuloso recurso energético que ajudou a criar uma ilusão complementar de riqueza e instalou um modelo social que além de artificial é insustentável porque há muito que funciona assente em actividades de rentabilidade marginal negativa.»

Parece-me que uma mudança de paradigma se imporá, nem que se recomece com a ausência de ilusões, ponto de partida para a reelaboração e a criatividade financeira de princípios simples que nos conduziu até aqui pela torção de um conceito de progresso assente na acumulação particular e não na partilha universal.