domingo, 27 de julho de 2008

Catorze Sementes


Há dias colhi o grão-de-bico que tinha semeado em Abril. Se as primaveras não correrem secas, o grão é uma cultura fácil. Pouco dado a problemas sanitários, também não tem exigências de cultivo especiais. Gosta de terrenos com boa exposição solar e com boa capacidade de retenção para a água. Com estas condições tenho um canteiro com uns cem metros quadrados. Depois de estrumado, cavado e destorroado, foi nele que semeei o litro de grão-de-bico que me arranjou a vizinha Júlia. Quatro meses, três sachas e outras tantas mondas depois, ceifei, debulhei e limpei. Eis o resultado: catorze sementes. Para quem não está habituado a este linguajar, esclareça-se que se dizia assim a produtividade da colheita, estabelecendo o factor pelo qual se multiplica cada unidade deitada à terra. No caso do grão em sequeiro, afianço que é um bom resultado.

Mas, contas feitas por alto, os catorze litros de grão que colhi correspondem ao produto de cerca de uma semana de trabalho – quarenta horas, grosso modo. Ora, na mercearia da Dona Isabelinha, vende-se o grão a 1,65€ o kg, o que quer dizer que a preços correntes a semana de trabalho que acumulei no canteiro de grão-de-bico que produzi vale no mercado convencional cerca de …18,5 € (1 kg de grão tem cerca de 1,25 litros). E se desprezar o custo dos factores de produção envolvidos (semente e matéria orgânica) teria sido esta a minha receita, correspondendo pois a uma remuneração do trabalho que não chegaria a cinquenta cêntimos por hora. Vamos admitir que eu sou pouco rotativo e que podia ter feito o trabalho em metade do tempo, que ainda assim a remuneração da hora de trabalho não ultrapassava um Euro. Ou seja, cerca de 1/3 da remuneração horária considerada pelo salário mínimo nacional.

Se utilizar como exemplo outras culturas agrícolas conduzidas de forma tradicional, o resultado não é muito diferente, o que leva a uma questão pertinente: por quanto teria de ser vendida a colheita para remunerar decentemente os factores de produção?

Bom, o problema não é a resposta, mas a pergunta, uma vez que a dificuldade não está em encontrar o valor teórico correspondente, mas quem o pague. O caso é que o modo de produção tradicional não está estruturado para o mercado tal como ele existe e funciona. Aliás, ele nem sequer se articula com a estrutura da sociedade tal como ela desaguou no século XXI. E isto porque os modos de produção agrícola tradicionais não são monetaristas nem produtivistas, como ficou bem claro quando ontem fui às compras à Dona Isabelinha e paguei 19,30 € por um pão, um pacote de manteiga, dois de massa, um quilo de arroz e duas meloas. Ou seja, vendidos ao público, os meus catorze litros de grão não davam para pagar a conta. Mas enquanto com o grão que colhi eu tenho o bastante para a base de pelo menos cinquenta refeições, aquilo que comprei por valor equivalente não me dá para meia dúzia.

Portanto, ao invés da produção agrícola tradicional, as premissas da organização do mercado e da formação de preços agrícolas da modernidade não são as da satisfação das necessidades alimentares básicas, mas outras. Ora é dentro destas “outras” que se insere a nouvelle corrente da agricultura biológica (AB).

Embora se inspire em lógicas, métodos e técnicas tradicionais, a AB não é um modo de produção tradicional, mas um up-grade híbrido, que combina alguma mitologia do tradicional, enquanto suporte de marketing, com a nata tecnológica da “revolução verde”, como modo de produção.

Com a retaguarda quantitativa assegurada pela agricultura industrial, a sociedade da abundância aceita de bom grado que a AB explore nichos de poder de compra claramente acima da média, disponíveis para pagar mais por produtos agrícolas supostamente mais saudáveis. Mas claro que esta disponibilidade tem um limite, e por isso quem investe na produção AB poderá ter que fazer vista grossa a pressupostos centrais de sustentabilidade na prática agrícola, como única forma de lhe preservar a margem bruta. Ou seja, a postura comercial do agricultor biológico não tem nada a ver com a do tradicional, que apenas ia à praça quando tinha um excedente de produção. O agricultor biológico cultiva objectivamente para um mercado e tem encargos fixos decorrentes dessa opção. Por isso ele tem que promover uma política de controlo de riscos numa perspectiva de pragmatismo produtivista / monetarista cuja lógica é tacitamente aceite e reconhecida pelo normativo europeu que “define” a AB - o Reg CEE 2092 /91, cuja leitura aconselho vivamente a quem sofra de insónias nas férias.

Quer isto dizer que se eu quisesse sobreviver como agricultor biológico, alguma coisa teria que fazer além de requerer a etiqueta “bio” para os meus grãos tradicionais e pagar o devido controlo a uma entidade certificadora. Porque se é verdade que com a etiqueta posso vender os grãos mais caros, essa diferença ainda não chegaria para remunerar os factores de produção e em particular o trabalho, que na agricultura tradicional é preponderante. Portanto, e no mínimo, seria sensato pensar em trocar os canteiros por uma parcela onde fosse possível mecanizar o trabalho, em vez de o fazer manualmente. Além disso, seria de bom tom prescindir das sementes tradicionais da tia Júlia e usar uns garbanzos espanhóis “decentes”, pois já se sabe que os olhos são os primeiros a comer e entre os berlindes híbridos de nuestros hermanos e as cabeças de alfinete tradicionais da minha vizinha, não há consumidor que se preze que opte por estes. Depois, se um de vocês passar por lá e me encontrar de garrafa de gás propano e maçarico em punho a queimar erva, não se admire, porque essa é uma das técnicas aceites em AB para controlo de infestantes.

Acontece pois, que embora a AB assente o seu argumentário em noções muito válidas, como conservação do solo e preservação dos ciclos da matéria orgânica e da água e recuse os agro-químicos de síntese, ela tem como irrelevante a origem das fontes de energia investidas no processo produtivo agrícola, bem como o respectivo balanço. Não seria por usar matéria orgânica produzida em França, turfa irlandesa ou guano chileno, em vez do esterco das minhas ovelhas, que os meus grãos deixariam de ser AB. Tal como não é por voarem diariamente de Faro ou de Nairobi para Londres que os hortícolas certificados como biológicos e produzidos em Odemira ou no Quénia para serem vendidos no Harrods, perdem a etiqueta.

É por razões desta natureza que, embora tenha de positivo o facto de repensar o modelo de racionalidade técnica que tem norteado a “revolução verde”, a AB não é uma alternativa ao modo de produção agrícola industrial. A AB é apenas uma sua variante soft com claras motivações comerciais, porque continua a ser financeira e não energética a lógica em que é pensada a sua viabilidade - em última análise, se não der dinheiro, não se faz! Além disso, há aspectos do modo de produção que preconiza que são de crítica incontornável. Mas essas ficam para a próxima.

12 comentários:

E. A. disse...

Bom dia caro Manuel,

Muito obrigada pela encomenda! Não se esqueceu! ;)

Era precisamente isso que pretendia ver explicitado, a desmistificação da AB, (e ainda esperarei pela segunda parte, prometida nas últimas linhas!).
A AB não passa de um evento no jardim do Príncipe Real todos os sábados, para que a pseudo-elite lisboeta se abasteça de "saúde". Ou seja, não passa de um distintivo do status social, como outra marca comercial qualquer.
No entanto, talvez este interesse pela marca "bio", possa, devidamente esclarecido e orientado, em reacção à insípida produção agrícola industrial, permitir mudanças de consciência e comportamento no consumidor.
Ainda assim, devo dizer, corremos sempre o risco de sermos ludibriados, pois mesmo os agricultores tradicionais (sem "bio") que de mês a mês vendem os seus excendentes nos mercados municipais, eles mesmos entre os moranguinhos e os limões da horta, impingem géneros industriais, camuflados em recipientes toscos. ;)
Nunca, como hoje, em terra de cegos, quem tem olho é Rei. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

É tudo marketing, incluindo a agricultura biológica... E híbrido! Estou cansado de culturas hibridas. :(

Anónimo disse...

Compreendo e considero pertinente o desenvolvimento que é feito no post. No entanto, tendo já consumido produtos bio e comprovado diferenças qualitativas organolépticas por comparação aos produtos correntes, não acompanho o primeiro comentário que refere o seu consumo como mero "distintivo do satatus". Afinal, está ou não comprovada a superioridade das qualidades alimentares dos produtos de agricultura biológica ?

Rita disse...

A melhor hipótese de qualquer agricultor biológico sobreviver como tal é produzir que lhe baste para se sustentar a si e aos seus e tentar depender ao mínimo dos produtos transformados, (mas isto o Manuel já sabia sem que ninguem lho contasse). E com a dificuldade de colocação dos produtos no mercado, temo que a maior parte dos agricultores biológicos se virem para dentro e se dediquem mais ao auto-sustento e menos à produção para venda ao público! Há muita gente que não tem quintal para pôr umas couves e para quem vale a pena dar um ou dois euros a mais por um produto biológico porque se há algo em que vale a pena investir, é na nossa saúdinha. Mas se não houver biológico, ou se este tiver 0,9% transgénico, onde vamos comprar?

Posto isto, tenho ainda a dizer que discordo dos 2 primeiros comentários. Quem vive em Lisboa (eu não!) e não tem mais onde comprar produtos de AB sem serem os quasi-artesanatos caríssimos dos hipermercados só pode mesmo socorrer-se do Príncipe Real ou da Biocoop. Pseudo-elite? E parece que isso é mau, fazer parte de um grupo preocupado com o que come. Parece-me que relacionar o consumo de produtos de AB com status social vem por arrasto ao mito de que eles são geralmente mais caros e por isso reservados a quem ganha mais. Não acho que essa perspectiva seja minimamente realista. Quem ganha mais compra comida para micro ondas, não tem paciência para o fogão e vai comer fora. Quem ainda vai ao mercado comprar vegetais AB é quem ganha menos e dá-se ao trabalho de demolhar e cozinhar feijão, tomate, courgette e beringelas biológicas para fazer as refeições que vai levar para o trabalho durante a semana. Com arroz integral biológico, que só por si é quase uma refeição e ainda está a um preço bastante acessível. E com isto já sei sobre que vou escrever na próxima semana. Então boas noites:)

alf disse...

Tem toda a razão, o problema maior não é a utilização de pesticidas, embora isso tb seja um problema; o problema maior é a energia, mas as pessoas nem sonham com a dimensão desse problema. Mas ele está aí, imenso, e vai desabar em cima da próxima geração provavelmente.

O auemnto imparavel dos custos de energia irá obrigar a grandes mudanças nisto tudo.

Deixa-me por um post no «outra física» que eu já volto ao «outra margem» para mostrar a dimensão inacreditável do problema...

alf disse...

Ah, esqueci-me duma coisa: belíssimo post

E lembra-me a resposta da tia velhinha da aldeia quando eu lhe perguntei se eram boas as peras da pereira de que ela cuidava com tanto esmero:

"boas??? O quê, para comer? para comer compra-se no supermercado!"

Manuel Rocha disse...

Agradecendo os contributos dos queridos comentadores, reservo-me para entrar nas polémicas aqui lançadas no seguimento da publicação do próximo post, o que até é uma excelente desculpa para a falta de tempo que trago agora..;)

Para já, gostava apenas de deixar uma pequena nota à questão que o Pedro deixa a concluir o seu comentário.

O tema das análises comparativas é um terreno muito escorregadio. Seria muito dificil estabelecer com rigor estatistico duas amostras de produtos de AB / AI, porque isso implicaria que tudo fosse identico ( solos, tempo, época, variedades ) e apenas o modo de produção fosse distinto.
Ora num solo com boa fertilidade natural e num ano pouco propicio a problemas sanitários, para uma mesma cultivar ( tomate, por exemplo ) pode nem sequer haver diferença entre produtos porque nem sequer há necessidade de marcar as diferenças que as duas abordagens preconizam.

Isto para concluir que mais que nos comparativos entre produtos, importava a meu ver que se olhasse antes para estas abordagens alternativas como sistemas.

Anónimo disse...

Caro Manuel:

Obrigado pela sua nota.

Se bem a entendi, o que está a dizer é que entre produtos da AB e da agricultura convencional pode nem haver diferenças qualitativas em resultado das condições objectivas em que a cultura decorre. Não tenho informação para o contestar, por isso posso aceitar que os produtos convencionais não são necessariamente piores que os da AB. No entanto não me parece que daí resulte ser inutil a garantia suplementar que a certificação biológica me dá, não acha ?

Anónimo disse...

"Mas enquanto com o grão que colhi eu tenho o bastante para a base de pelo menos cinquenta refeições, aquilo que comprei por valor equivalente não me dá para meia dúzia.
Portanto, ao invés da produção agrícola tradicional, as premissas da organização do mercado e da formação de preços agrícolas da modernidade não são as da satisfação das necessidades alimentares básicas, mas outras."

Excelente reflexão.

São essas ourtras lógicas que também conduzem, infelizmente, àquilo que este meu postal quer combater.
http://umjardimnodeserto.nireblog.com/post/2008/08/01/deixa-me-vivermama-let-me-live-mommy

Espero que possam concordar e participar em grande número.

Manuel Rocha disse...

Pedro,

Sinceramente, não acho.

Penso que a obrigação da governança nesta questão do alimentar é a de assegurar a todos modos de produção alimentar seguros e duráveis, e não institucionalizar critérios de distinção entre produtos de "primeira" e de "segunda".

A etiqueta Bio é a intitucionalização de um "produto de primeira", o que implicitamente formaliza a tolerãncia para com a existência de outros de "segunda".

Ora se estivessemos apenas a falar de questões de sabor, o assunto seria pacifico. Mas estamos a falar de questões de estratégia, pois a AB afirma-se com argumentos de impacto no ambiente na saúde pública e na sustentabilidade da produção agricola por opoisção aos impactos negativos da restante actividade agriola. Por isso não me parece que nesta matéria o bom governo seja o que entrega ao consumidor a possibilidade de optar, mas o que introduz dinãmicas de mudança estrutural no sentido de tornar extensiveis a todos os cidadãos os beneficios do que de melhor exista para as suas necessidades básicas.

Claro que isto não obsta a que qualquer grupo de cidadãos se organize para cultivar as suas couves como bem entender. Mas é para isso que servem as Associações. E se estas se apresentarem no mercado com publicidade enganosa, julgo que estão sob a alçada da lei geral. Portanto, continuo semperceber o que pretendeu a Comissão com a Reg da AB, que de resto e em respeito pelo conteúdo, deveria era ser referida como Agricultura Integrada, pois não são a mesma coisa...

Anónimo disse...

Bem argumentado, Manuel...

Rendo-me!

:)

Anónimo disse...

Olá Manuel,

Mais um post muito interessante, para não variar.
Comento para sugerir o desenvolvimento dos comentários que deixou em resposta ao Pedro Feist, pois pressinto ali matéria pouco óbvia para muita gente e em relação à qual eu também tenho muitas dúvidas.

Florbela