Os pequenos abalos sociais que têm ocorrido na sequência da escalada do preço do petróleo, trouxeram de novo à superfície a discussão já recorrente sobre a necessidade de mudanças de comportamentos para de algum modo prevenir a eventualidade de um sismo de maiores proporções.
Quando contacto com essas polémicas, não consigo evitar a sensação de assistir a uma junta médica convocada para uma clínica género Coporación Dermoestética, com vista a resolver a melhor forma de fazer chegar aos cem anos uma abastada paciente de oitenta e muitos que, apesar da fortuna que herdou e do aparente bom aspecto que as várias cirurgias plásticas ainda lhe asseguram, está há décadas ligada a tudo quanto é equipamento artificial de suporte de vida.
Em consequência, além do uso metódico da infinita panóplia técnica disponível, propõem-se ainda à “paciente civilização” algumas mudanças de comportamentos. Tipo consumo da comida sem sal e deixar de fumar. Útil ? Sim, eventualmente. Mas, no limite, mudando comportamentos sem alterar contextos, tudo o que se consegue é adiar o fim, possivelmente na expectativa de que entretanto ocorra a descoberta do elixir da eterna energia.
De facto, quando as cátedras regimentais do capitalismo liberal sobem ao púlpito para anunciar à plebe a necessidade de mudar comportamentos, é essa a ideia com que se fica: a de que “ isto até vai lá” com uns “ajustes” e sem necessidade de interferir demasiado com as comodidades conquistadas, enquanto não se chega à descoberta duma solução definitiva.
Mas a questão há muito que deixou de ser apenas de comportamentos, pois o modo de vida associado ao paradigma que nos governa, assente nos combustíveis fósseis como fonte de energia, criou uma estrutura de uso de energia demasiado rígida para que seja possível pensar na mudança unicamente pelo lado dos seus efeitos. E é isso que os comportamentos são: efeitos que produzem efeitos. Não são causas. Ora essa estrutura de causas é sobretudo conceptual. Por isso, os comportamentos de consumo devem antes ser vistos pelo prisma das atitudes que lhes estão na origem, pois é nas predisposições culturais que o modelo civilizacional enraíza.
Ou seja, não se anda de carro por mera carolice, mas porque no carro como conceito convergiram valores de mobilidade, autonomia, e status, que se têm vindo a cultivar de forma sistemática e cuja funcionalização esteve entretanto na origem do moldagem do espaço e de todas as interacções que nele se realizam. Assim, quando se sugere dar menos uso ao transporte individual e mais ao colectivo, não há dúvida de que se aponta para uma mudança de comportamento individual. Mas para que ela não seja meramente simbólica no que à economia de energia diz respeito, teria que ter uma expressão social significativa. Ora, esta está limitada por factores físicos associados à forma como culturalmente se habita. Ou seja, a atitude dominante na ocupação e uso do território, que é de matriz metropolitana, assenta nos conceitos de mobilidade como constante e de localização como variável independente, e por isso convive pacificamente com desfasamentos importantes entre os locais de trabalho e residência, como entre os de produção e os de consumo. Portanto, ainda que se concretize a pretendida "transferência modal", não são desse tipo as soluções bastantes para repor os desejáveis equilíbrios na relação pouco sábia que temos tido com a energia.
Claro que esta parte ninguém está interessado em discutir, uma vez que a submersão prolongada neste caldo de supostas facilidades fósseis em que temos vivido as últimas décadas, parece ter induzido uma inabalável crença autista na solidez do modelo civilizacional que construímos, crença essa que inexplicavelmente perdura, mesmo quando os seus crentes se deparam com os depósitos dos carros vazios e passam horas numa fila de abastecimento de arroz, à minima birra de algumas centenas de camionistas.
Mas a verdade é que, ainda que não pareça, a economia real não se suporta em fluxos financeiros, mas em fluxos de bens. Ora a boa gestão dos bens não depende apenas da coerência administrativa, do bom funcionamento logístico, ou da racionalidade do uso individual subjacentes ao modo como se organizam esses fluxos. Depende antes de mais do que se entende por bem, conceito que é definido pelo sentido do seu uso. Por isso a questão central da mudança no uso de um bem é a do sentido desse uso. Na ausência de um sentido, de uma sabedoria no habitar, sobra apenas o que é efémero. Tal como sucederá à paciente da Corporación Dermoestética que, na ausência de um legado que projecte e dê sentido à vida que teve, irá ser recordada por ter morrido sem rugas no dia em que fazia cem anos e por nada mais !
25 comentários:
Atè que enfim que regressa Manuel!
Espero que tenham sido muito boas essas férias, porque pelo texto as diferenças não se notam, pois são sempre bons !
Está muito bem achado o titulo que dá ao texto. Soltou-me uma gargalhada que me fazia muita falta para cortar os amargos de um dia pesado. O desenvolvimento está muito bem conseguido, como é seu apanágio. E os links que deixa para os textos do F Dias e do Francisco, fazem todo o sentido. Vocês fazem uma tripla de peso, não há dúvida!
Tenho um pedido, posso ? Gostava que desenvolvesse sobre o tema do "sentido"...será possível.
Florbela
Bom post! Uma noção que elabora, a do sentido do uso, reconduz-me à ontologia diferencial: para o sonhador, o ser é valor; um bem no qual a oposição sujeito/objecto desaparece. É esta experiência "cósmica" de "felicidade" que está a desaparecer, esmagada pelo consumismo. Vou pensar nisso e amanhã regresso com mais tempo. :)
Ah, partilho do entusiasmo da Florbela: bom regresso. :)
Junto-me à Florbela e ao Francisco para aplaudir o seu regresso, Manuel!
Aplaudo, igualmente, o registo irónico a que já nos habituou e que se anuncia logo no paratexto. E ainda, sem que me doam as mãos, a relação muito oportuna que estabelece com os raciocínios do Fernando Dias e do Francisco - sempre fui muito adepta dos registos intertextuais :))
Acompanho-o na diferenciação que estabelece entre mudança de comportamentos vs mudança de contextos que desaguam, respectivamente, no supérfluo e no premente.
Daí a importante relação dos valores da noosfera e do lar, em oposição ao conceito material de casa.
Bravo, meu Vizinho!
Francisco,
As suas pistas deixaram-me curiosa!
;-)
Caro Manuel,
Compreendo o seu texto se a analogia da mulher de 80 que ama a beleza e a juventude, servir para exemplificar as medidas meramente cosméticas, respeitantes à gestão enegética. Porque em relação ao "sentido" - conceito que, como viu a Florbela, é necessário um esclarecimento, dada a sua polissemia.
O "sentido" no domínio do indivíduo e em sociedade e sobretudo em economia diferem, e, por isso, devem ser apartados distintamente. Ou seja: a chave do seu texto é o "sentido do uso", mas isto deve ser explicitado, porque "sentido do uso" e "sentido da vida" não é o mesmo, pois eu não hipostasio a minha vida, eu sou ela, ou seja, n a torno objecto, n a uso. Mas esta hipótese é inviável numa solução económica, daí que assinalo esta incongruência, que pode ser apenas aparente.
De resto, não sei se os links para os posts do F. Dias e do Francisco elucidam o seu texto, mas n os li.
Bravo, Papillon! Julgo ter compreendido a essência da palavra utilizada pelo Manuel e assim ter ultrapassado a dimensão plural que signo e significado possam possuir, mas reconheço a importância da dilucidação de certos conceitos, sim, para evitar que algo se perca algures no canal de comunicação... ;-)
Bem, a Papillon esquece que o valor de uso ultrapassa a dimensão meramente económica e esquece que fazemos um uso técnico do corpo: gosta de ver provas de atletismo e esquece as técnicas corporais dos atletas. O desporto faz parte da vida desses atletas e pode dar sentido às suas vidas.
Além disso, o corpo pode ter também um valor de troca: a prostituta é um valor de troca e, no fundo, todos nós vendemos de algum modo o nosso corpo, porque somos o nosso corpo.
Portanto, a elucidação não tem sentido: equivoca em vez de esclarecer.
Francisco,
Eu n me dirigi a si. Se perecbeu, óptimo, eu como não sou tão inteligente, não percebi. :)
Manuel
Colocou a questão e a solução em termos excelentes:
"Depende antes de mais do que se entende por bem, conceito que é definido pelo sentido do seu uso. Por isso a questão central da mudança no uso de um bem é a do sentido desse uso. Na ausência de um sentido, de uma sabedoria no habitar, sobra apenas o que é efémero."
De modo cristalino e transparente com a água mais pura que brota da fonte. Isto é pensamento do sentido!
Vejo que o debate vai animado e ainda bem. Esperemos é que o Manuel não tenha ido novamente de férias e se esqueça de nós.
Ora bem, eu julgo ter entendido que a questão do sentido tal como foi suscitada no texto, remete para o conceito de energia como bem social, e para a importancia do valor da sustentabilidade no seu uso.
Florbela
Caro Manuel Rocha:
Junto a minha às vozes de satisfação pelo regresso seus textos.
Bom tópico ! Deveremos aguardar continuação desta leitura contrafactual ?
Cumprimentos.
Trigo Pereira
Não, Florbela, não fui novamente de "férias" nem vos abandonei :))
Mas por agora só consigo tempo para agradecer os vossos comentários e para sugerir que continuem a discussão , pois parece-me que tem imenso potencial.
Prometo voltar logo que possa para um comentário mais apropriado;)
Florbela,
Enquanto aguardamos pelo re-regresso do Manuel, não nos faria o obséquio de avançar com umas linhas sobre a relação de sutentabilidade com o conceito de sentido aqui utilizado, energia e bem social?
Eheh, Denise !!! Na provocação logo pela manhã ?? Ehehe!!! Tenho algumas ideias sobre o tema,concedo, mas juntá-as de forma a que façam sentido é outra coisa. Deixo isso para os Grandes Mestres ( o Manuel, o Francisco o Fernando ) que têm esta enorme generosidade de se partilharem connosco em textos que mereciam muito maior visibilidade e leituras muito mais atentas que as que porventura aqui encontram. Acabamos por andar todos demasiado ocupados com as nossas agendas pessoais para nos concedermos tempo para reflectir o sentido do que fazemos. Como o nosso papel enquanto professores, em que tão pouco uso damos à enorme margem de manobra que temos para introduzir no espírito da juventude ferramentas básicas para um olhar crítico sobre o que nos rodeia.
Florbela
Bom dia, Florbela!
Permita-me pegar precisamente no último ponto, o do pouco uso que nós, professores por vezes "damos à enorme margem de manobra que temos para introduzir no espírito da juventude ferramentas básicas para um olhar crítico sobre o que nos rodeia".
As disciplinas de Português e de Francês ultrapassam, como sabe, a aprendizagem da língua e a reflexão meta-linguística. O domínio consciente e consolidado da língua, materna ou estrangeira, permite-nos uma estruturação do pensamento mais livre e uma intervenção responsável na comunidade e na sociedade em que nos inserimos. Interessam-me, também como professora, as matérias que aqui se discutem, porque no ensino básico elas apresentam-se nas minhas disciplinas como conteúdos temáticos e no ensino secundário como aspectos a explorar hermeneuticamente no texto literário.
Não tenho formação base nem contínua nesta área e julgo que aqui em Portimão (como aliás, convenhamos, a nível nacional) se poderiam articular estes conhecimentos com a realidade local.
Por isso, cara colega, mantenho o pedido de connosco partilhar as luzes que já possui!
;-)
As respostas às nossas questões estão sempre no fim de um caminho, é preciso dar muitos passinhos para lá chegar, não se chega lá com um só passo.
Acabei de dizer isto na resposta a um comentário no «outra física» e penso que também se aplica aqui. Eu, pelo menos, sinto-me perdido quando se levanta um problema e se aponta logo a resposta ou a culpa -o capitalismo.
É muito fácil criar ideias erradas àcerca das pessoas - que as crinças são naturalmente uns anjinhos, que o homem existe através da sua habitação, etc. Somos muito mais complexos do que isso. E o «capitalismo» surge sobretudo dessa nossa complexidade.
Nós não estamos construidos para ficarmos «parados», nós somos exploradores do Universo. Por isso somos vaidosos, ambiciosos, queremos ser conhecidos, ricos, etc. Esses «defeitos» são essenciais para que nos «movamos» a partir do ponto zero em que nascemos.
São caracteristicas de «arranque», mas tarde, feito o percurso inicial, passamos alem disso, começamos e entrar na «sabedoria». São fases do nosso percurso.
Uma organização social que nos convenha tem de contemplar isso.
Posto isto, este post chama a atenção para uma coisa muito importante - o paradigma em que vivemos, porque era o que mais nos convinha até agora, tornou-se impossivel, tem de ser mudado.
A solução não está em diminuir impostos sobre os combustíveis, etc. A solução passa por uma nova organização social menos consumidora de energia.
Como é essa organização? É preciso pensar muito, dar muitos passinhos no caminho. E certamente que não é um regresso ao passado, terá de ser um novo passo no futuro.
Muito bom o post, os links, muito estimulante, veja só o que eu escrevi de rajada!
Denise, embora aqui o Manuel não se descaia, acho que as luzes que eu tenho vieram desta fonte. Ehehe !
Mas deixo-lhe o que me parece uma boa sugestão: procure um projecto da direcção regional de educação que dá pelo nome de PREAA, se é que ainda não o conhece. Há mesmo escolas que dão horas para quem se queira assumir como dinamizador do projecto ao nivel da escola.Alia a componente pedagógica e a ambiental, e tem uma filosofia completamente transversal. Embora nos ultimos dois anos não tenha estado envolvida, sei que no ano que agora finda trabalharam a partir da criação/recriação de contos, o que lhe deve interessar.
Obrigada, Florbela.
Conheço o projecto e agrada-me sobremaneira a educação pela arte. Quando conseguir colocação logo em princípios de Setembro em vez da tristeza das Cíclicas, talvez já me possa aventurar em voos desse calibre...
Ola Manuel,
Convido-te a vires a Berlim :) e a experimentar uma diferente sabedoria no habitar.
Veras, por exemplo, como e possivel a sintonia entre "a funcionalizacao do transporte colectivo" e o "uso do espaco metropolitano".
C.
Olá C.
Não conheço Berlim. E é evidente que não me passaria pela cabeça recusar semelhante convite, ainda por cima com direito a visita guiada;). Portanto, diz-me quando e aí estarei :))
O que o Manuel propõe é uma revolução interior que começa com o assassinato do ego, do materialismo sob a forma de ter, parecer, ostentar... aconselho-o vivamente a limpar o governo com um lança chamas e a substituí-lo por uns monges importados do Tibete, é capaz de assim conseguir alguma coisa. Se esta solução lhe parece ligeiramente inviável, pelo menos fique a saber que já sensibilizou os seus leitores:) Entretanto, coincidência (!) descobri uma chica-esperta que diz exactamente o contrário: dar cabo do planeta, começando pela humanidade, para o que basta dar-lhe exactamente aquilo que ela pedir. Parece que afinal somos como os porquinhos da índia, que comem até morrer do excesso. Vide polegarverde para detalhes. E boa faina (agrícola)****
Ó homem, já eu fui e vim da Austrália e ainda aqui estamos? Querem lá ver que tirou férias e não avisou a malta?!
Manuel, você tanto me fez pensar nestas coisas que acabei de pôr o problema em números. Aritmética elementar. Vou começar a publicar uma série de posts no outramargem com a quantificação do problema. Que é muito mais sério do que eu imaginava. Mas que me fez perceber coisas muito importantes. Mais uma peça no meu puzzle...
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