terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Soil Conservation Services

É natural que a maioria das pessoas que reconhecem o Prof Henrique de Barros o associem à sua actividade política e em particular à Presidência da Constituinte ( 1975/76 ) onde deixou a sua marca de grande humanista. No entanto H de Barros foi também um proeminente agrónomo e em particular um excelente teorizador da economia agrária, matéria em que fez escola.

Recordei-me do Professor a propósito da forma como classificava a terra agrícola. Para H de Barros a terra agrícola era “capital” e para a distinguir de outros bens de capital que contribuem para a produção agrícola, subclassificava-a como “capital fixo inanimado”.

Como é evidente H de Barros sabia que a terra agrícola, ou seja, o meio em que se realizam as culturas e que os agrónomos gostam de designar por solo, não é uma entidade inerte mas um ecossistema vivo de cuja dinâmica e equilíbrios depende o sucesso da actividade agrícola. De resto, terá sido seguramente por isso que o referia como “bem de capital”, para assim sublinhar o seu carácter de património essencial estruturante e inalienável.

Contrariamente a uma ideia equívoca muito corrente nos nossos dias, o solo agrícola e a sua fertilidade não são exactamente dados naturais. O solo é uma criação do homem. Foi a actividade humana que, aproveitando condições naturais de elevado potencial fértil ( vales de aluvião, por exemplo ), as preparou para a agricultura através de uma prática a que H de Barros chamaria de benfeitorias sucessivas. Hoje observamos essas benfeitorias sem sequer delas nos apercebermos porque a nossa percepção da paisagem agrícola não tem um “antes” de referência. Por isso, quando se observa uma seara nos barros negros de Ferreira do Alentejo não percebermos que subjacente se encontra “apenas” a incorporação do trabalho de gerações inteiras graças ao qual hoje existimos.

O solo, como bem patrimonial, incorpora saber e trabalho. O seu bom uso está sujeito a princípios universais, mas as regras específicas desse uso são de feição local ( culturais ), obedecendo por isso a pressupostos e tempos padrão que não são necessariamente deslocáveis geograficamente .

Na década de 30 do século passado, o mau uso do solo protagonizou o mais conhecido acidente ecológico do género da modernidade. Ficou conhecido por “ Dust Bowl years” e aconteceu no midwest dos Estados Unidos América. Colonos arvorados aprendizes de agricultores viram nas intermináveis pradarias um maná de oferendas e cometeram um erro típico do etnocentrismo ocidental, que é considerar que o que é válido para a Europa é igualmente válido para o Mundo. Não é ! A que seria uma prática agrícola “suportável” nos solos europeus desestruturou os das pradarias em menos de uma geração. Alguns simplistas gostam de atribuir o fenómeno a uma grande seca climática. Mas se tivesse sido só isso o governo federal dos EUA não teria criado o SCS – Soil Conservation Services, a primeira instituição de carácter marcadamente ecologista, para gerir a crise e prevenir novas ocorrências, o que fez reordenando o uso do espaço e a prática agricola.

Claro que perante uma situação em tudo idêntica, nenhum SCS foi criado para o Sudão em meados dos anos setenta. Depois de décadas ao serviço da produção de algodão para a indústria têxtil da Majestade Britânica, os solos agrícolas do sul do país esgotaram deixando milhões à deriva. Quem hoje consome à hora do jantar as reportagens sensacionalistas que se produzem sobre o Darfur, tem opinião formada de que se trata de um mero problema de conflitos tribais entre senhores da guerra. Será. Mas originada por uma imensa mole humana que deixou de puder subsistir pela agricultura tradicional, inviabilizada pela agricultura industrial do ocidente, e por isso migrou sobre os seus vizinhos. Contrariamente aos britânicos, que estavam no Sudão de “passagem”, os americanos estavam no midwest para ficar. Apenas por isso e porque a América do tempo não era a Africa pós-colonial, o midwest não “darfurizou”!

A pressão da agricultura industrial capitalista sobre os solos agrícolas deitou pelo cano séculos de sabedoria. Nada supera a capacidade destruidora de um tecnocrata para quem qualquer questão agrícola se resolve mediante regra de três simples em que a expressão da cash-crop depende da potência do tractor, da quantidade de adubos e de um bom programa de uso de pesticidas. Para este tipo de gestor da modernidade agrícola que se pretende sucedâneo do agricultor, o solo deixou de ser bem de capital passando a mero factor de produção, e como tal usado e contabilizado como outro custo qualquer. Por isso não hesita em aderir ( e nós com ele ) a novos projectos de "malfeitorias sucessivas" que mais não são que autênticas sementeiras organizadas de miséria. Estou a falar dos biocombustiveis !

Num momento em que na Europa aparecem os primeiros sinais de realismo quanto aos impactos de mais esse projecto típico do autismo de certa intelitgencia, já as grandes petrolíferas ( GALP incluída ) avançam em África e na América do Sul com projectos de depauperação permanente de capital-solo alheio a troco de uma ilusória prosperidade transitória.

Se H de Barros e outros agrónomos da sua geração como Emidio Guerreiro, C. Carvalho ou Lobo de Azevedo soubessem destes projectos, exclamariam perplexos: "mas aquilo são só latrites "!! Com tarimba feita nos projectos agrícolas da África colonial, qualquer deles tinha o saber de experiência feito do que acontece na maioria dos solos do hemisfério sul quando submetidos à agricultura industrial - claudicam ! Mas como essas memórias de homens sábios deram lugar à mesquinhez dos imediatismos saloios, não se vê quem manifeste perplexidade quando a GALP firma com a PETROBRAS um acordo para a produção no Brasil de 700.000 hectares de oleaginosas para ajudar a suprir a irrisória quantia de 5%, repito, 5% do nosso consumo de gasóleo ! Nem sei mesmo se alguém terá ideia de que estamos a falar no uso de uma área equivalente a 70% do capital agrícola de Portugal !

17 comentários:

Anónimo disse...

Continuas inspirado!!!!
E a gostar de escrever! :)
Continua!!!!!!!!
:D

Anónimo disse...

Gostei muitíssimo deste texto! Concluída a leitura fica-se sincera pena de que não seja possível o debate ao vivo dos importantíssimos tópicos nele focados, em relação ao quais, estou certo, o autor teria muito mais a dizer.
A muito relevante questão de Darfur é a primeira vez que a leio colocada nos termos correctos. Tal só possível para quem tenha conhecimento de facto da trágica realidade africana.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um excelente texto sobre o solo visto como "ecossistema", como "capital fixo inanimado" (H. de Barros), ou "património essencial":
"O solo, como bem patrimonial, incorpora saber e trabalho."
Portanto, uma "pedologia humana e cultural": a ciência específica dos solos que incorporam "saber e trabalho", como diz. Ou uma "edafologia", se levarmos em conta as raízes e os organismos! O seu texto reconduziu-me a P. Duvigneaud, embora tenha pensado também na "ecologia humana" de Emilio F. Morán. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Abaixo os tecnocratas do solo agrícola!
Alguns julgavam que os solos da Amazónia eram bons para a agricultura! O capital definha tudo. E não conseguimos fazer nada para o chamar à razão. a ilusão do dinheiro é terrível.
Retomando o meu tema, penso que H. arendt tem razão quando diz que, no ocidente, o poder tornou-se impotente e, portanto, a violência está na ordem do dia. Basta alguém ter uma ideia e eis a revolução! Neste caso, será necessário "decepar", faz parte da dinâmica das mudanças históricas significativas... :))

Manuel Rocha disse...

X,

É um gosto ter uma leitora-mistério !
:))

T. Pereira,

Concordo consigo com o potencial das tertúlias. Quem sabe se um destes dias não organizamos uma...:))


Blue,

Os nitratos são um problema grave.
Sobretudo devido à contaminação dos aquiferos e ao efeitos de eutrofização que podem potenciar nas águas superficiais. Mas nos solos europeus propriamente ditos não se podem considerar uma tragédia porque o clima é chuvoso ( "lava-os"...são altamente solúveis ) e as culturas também os removem.
Sobre metais pesados nos solos europeus tenho pouca informação....;((



Francisco,

Sim, o solo como entidade edafo-climática e cultural é a forma mais abrangente de o caracterizar como conceito.Botelho da Costa tem optimas dissertações nessa linha...:)

A Sintese Ecológica de Duvigneaud não me seduziu particularmente...:(
O que conheço de E Morím é pouca coisa. Acompanhei alguns trabalhos que desenvolveu sobre o “efeito albelo”mas sinto que trabalha com informação pouco amadurecida....:( pois não me parece que tenha decorrido tempo suficiente para estabelecer relações de causalidade sólidas entre as variáveis que estuda...:((

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também não gosto muito de Duvigneaud; mas é sintético. Prefiro Ehrlich, talvez porque prefire a ecologia do comportamento. Mas gosto de o ler para aprender! :)

Tiago R Cardoso disse...

Ou seja na perspectiva, a Europa é um parasita que se alimentou dos proprios solos até à exaustão, reparou que estavam a ficar destruidos, exaustos e que o que iria lá agora plantar ainda os tornaria piores e resolveu avança nos terrenos dos outros, para partir dai continuar a alimentar-se.

Manuel Rocha disse...

Há uma nota do Francisco sobre a suposta fertilidade dos solos da Amazónia que merece algumas linhas.

Efectivamente apenas cerca de 6% dos solos da Amazónia podem ser considerados como potencialmente férteis para a agricultura.

Quem olha para uma floresta e a vê luxuriante pode ser levado a pensar que está instalada em solos fertilissimos. Mas o caso é que em climas adequados ( humidade e temperatura )e com tempo a floresta cria o seu próprio solo ( manta morta ) onde se nutre. Retirada a floresta a manta morta restante é meramente residual e a aparente fertilidade revelada por primeiras colheitas bem sucedidas rapidamente entram na tradicional curva dos rendimentos decrescentes...:((

joshua disse...

Gostei! Subscrevo a perspectiva e a mundividência subjacentes ao teu texto, Manuel.

Levarei em linha de conta a tua simpática nota no Notas.

A questão do 'atentado' pode ser mais complexa do que se pensa. Temos de conservar o espírito aberto e acolher a informação possível, na certeza de que a Indonésia e a Austrália não são meninos ingénuos em todo o processo de cobiça.

Abraço

PALAVROSSAVRVS REX

antonio ganhão disse...

Gostei imenso da abordagem a este solo capital... também o capital humano é visto como um simples custo de produção, e com a devida dose de formação e avaliação: um verdadeiro biocombustível!
`
São os novos paradigmas da ecologia humana.

Manuel Rocha disse...

Tiago,

Há mais uns "detalhes" a considerar, vou tentar chegra lá num próximo post...:)

Joshua,

Obrigado.
É como diz. Temos de nos manter atentos para preservar a nossa capacidade de desmistificar a informação que nem sempre nos chega conforme os acontecimentos que a suscitam. E o caso das alterações climáticas é bom exemplo...:))

António,

O capital humano terá que encontrar forma de sacudir a condição de mero factor e tornar-se sujeito do seu futuro. Para isso precisamos de leituras de ruptura que nos ajudem a reequacionar as questões em lugar de continuarmos a olhar para os problemas de sempre mudando as variáveis mas nunca as equações...:)

Blue,

Exacto !
E há anos atrás a situação esteve pior. O vale do Rur aí ao pé de ti com problemas graves de chuvas ácidas com impactos na floresta Negra e nos solos desda a Normandia à Baviera...mas relativamente aos solos de per si,
nessa região são profundos e antigos, o que lhes dá uma grande "resistência"...:)

Biocombustiveis ? O grande problema deles é serem apresentados com o estatuto de energia "alternativa". Ora para isso, mesmo para os "modestos" objectivos europeus, a sua produção implica o uso de áreas que a Europa não tem disponiveis e que noutras latitudes têm sérios problemas agronómicos e ambientais.

Queres um post só sobre isso ?? Arranja-se...

:))

quintarantino disse...

Manuel Rocha, mais um excelente texto onde, aqui e ali defende posições sujeitas a controvérsia.

O Darfur, por exemplo, penso que resulta de um misto entre a tal mole humana à deriva, os solos esgotados, fenómenos tribais e religosos e senhores da guerra.

Sou dos que acreditam que fenómenos como esse nunca têm um detonador único, tipo interruptor.

No mais, meu caro, só posso estar de acordo com um cidadão do mundo que de solos percebe muito mais que eu.

Blondewithaphd disse...

Não venho aqui muitas vezes, é um facto. Mas hoje tenho mesmo de dizer umas coisas:
- Não gostei deste texto, devorei este texto. Diz-me muito no plano pessoal;
- Sem a terra morreremos, tomamo-la como facto garantido e eterno, não é assim;
- E que país é este que deixa morrer o sector primário (e aqui contra mim falo)?
Gostei de ler alguém escrever sobre ideias que partilho de muito perto. Não foi só a confluência opinativa que me fez gostar do texto, foi, também, a clareza da exposição e a interligação temática (eu a pensar que pouca gente sabia o que foi a catástrofe humanitária e económica dos Dust Bowl Years e afinal...).
A ver se venho mais vezes.

Manuel Rocha disse...

Ok, Blue...vai já a seguir...:))

Quint,

O amigo está cheio de razão. É evidente que podemos sempre inventariar "n" razões para um desastre. Dou então a volta ao texto e coloco as coisas doutro modo. Decrete a paz na região e coloque todo o conhecimento de que dispomos ao serviço da recuperação agricola dos territórios "entre Nilos" do sul do Sudão, que ainda assim no fim deste século eles não serão capazes de suportar metade da população que alimentavam no principio do sec XX. Repare que nem falo de quanto isso custaria, até porque essas contas também não foram feitas no caso do midwest...


Blonde, carissima,

É um gosto recebe-la nesta casa. Será sempre bem vinda em qualquer das suas versões linguisticas...::))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aguardo(mos) o post sobre biocombustíveis ou sobre as novas energias! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Existem na blogosfera uns "racistas coloridos"! Só ódio! Pensam que vão fazer a "revolução"..., para derrubar o "ocidente". Por isso, não os defendo, mesmo que tenham alguma razão! Mal por mal, prefiro que tudo fique igual! Alguns pensam que Obama vai "negrizar" os USA? :(

Fernando Bianchi de Aguiar disse...

Peço que nos explique qual o fundamento da afirmação "já as grandes petrolíferas ( GALP incluída) avançam em África e na América do Sul com projectos de depauperação permanente de capital-solo alheio a troco de uma ilusória prosperidade transitória."
Sou o responsável do Planeamento Agronómico dos projectos de biocombustíveis da GalpEnergia e duvido que conheça a nossa actividade em África. Aproveito também para lhe perguntar a fonte da informação que veicula sobre os 700.000ha do acordo GALP/Petrobras. Se com seriedade quer tratar do assunto facultar-lhe-ei toda a informação que desejar.