domingo, 17 de fevereiro de 2008

Biocombustíveis em Revista


Sobre biocombustíveis já se escreveram “resmas”e não é difícil prognosticar que muitas mais teclas vão ser batidas sobre este assunto. Mas qual a síntese possível neste momento?

A natureza moderna da coisa “biocombustível” parece estar razoavelmente delimitada em redor de produtos carburantes com origem em espécies vegetais que se possam cultivar. Não sendo um conceito novo ( há milénios que o azeite era usado como combustível ) aos biocombustíveis da modernidade é no entanto feita uma exigência peculiar, que é a de se constituírem como alternativa aos derivados do petróleo e nessa condição serem úteis ao nosso modo de vida, abastecendo os depósitos dos mais variados tipos de motor de cujo funcionamento depende o nosso modelo civilizacional.

Este requisito tem como implicação imediata que a eles, biocombustíveis, se pede, além de características físicas e químicas específicas, um elevado potencial calórico, essencial à obtenção da potência que requeremos desses motores. Do que tem sido ensaiado para este efeito, as preferências têm recaído sobre os álcoois (etanol) e os óleos de origem vegetal.

A produção de etanol decorre da fermentação alcoólica de plantas ricas em hidratos de carbono. O milho e a cana do açúcar têm sido as mais utilizadas. Os óleos vegetais mais usados têm sido obtidos por extracção de sementes oleaginosas, com a soja, a palma, a colza e o girassol a liderarem a lista. Com a tecnologia até agora utilizada, no entanto, nenhum deles se revelou capaz de atingir as performances calóricas dos derivados do petróleo. Comparativamente à performance calórica de 1 litro de gasolina ( cerca de 10.000 kcal ) o melhor que se consegue obter de um litro de etanol (o mais energético) é cerca de 70% desse valor.

Ainda assim, a viabilidade técnica da incorporação de certas percentagens de etanol na gasolina ou de biodiesel no diesel parecem razoavelmente resolvidas sem modificações significativas dos motores existentes. Do uso directo de um ou de outro, também não parece que decorram impactos que não estejam já associados aos combustíveis convencionais ( gases de escape e poluição, e os problemas associados às logísticas de transporte). Além disso progressos tecnológicos da física e da química têm vindo a permitir melhorar limitações técnicas de vária ordem, pelo que não é difícil de prever que em poucos anos quaisquer destas performances possam ser melhoradas, não se afigurando pois a questão técnica como um problema estrutural novo ao uso dos biocombustíveis ou, no mínimo, digamos assim, não constituem matéria de polémica original.

A controvérsia sobre a utilização de solos agrícolas para produzir combustíveis ou para produzir cereais, essa sim, questão estrutural, também não é propriamente original. Não é na medida em que há décadas que a agricultura industrial tem vindo a fomentar outras estratégias de produção irracionais, como têm sido as que estão na base da pecuária industrial. Entre produzir milho para engordar frangos em aviário e fazê-lo para a produção de combustíveis existe uma diferença, de facto, pois os 2,3 kg de milho em grão que são necessários para produzir um litro de etanol bastariam para resolver as necessidades de manutenção de uma família de quatro pessoas durante dois dias. No entanto, com 2,3 Kg de milho também não se produz muito mais que duas asas do frango, o que manifestamente também não daria para alimentar quatro pessoas durante dois dias. Portanto, estamos apenas perante lógicas semelhantes ( de desperdício ) de gestão de recursos primários.

A questão da rentabilidade energética da produção dos biocombustíveis, i.é, de se saber se para produzir um litro de biocombustível não se estará a gastar mais energia que aquela que desse litro se pode retirar, também não é propriamente original. D.Pimentel, por exemplo, investigador português radicado na Univ. Cornell e que se notabilizou pelo pioneirismo na introdução da análise energética nas actividades económicas, tem vindo a liderar a produção de relatórios arrasadores para os biocombustíveis e pondo em causa a euforia que se gerou em redor deles ( Pimentel e Tadzek, 2006 ). Para o biodiesel de girassol produzido no EU, Pimentel defende que o seu custo energético é superior em 118% ao seu potencial calórico, i. é, custa mais do dobro da energia que produz!
Como já referi noutras ocasiões, Pimentel inverteu a lógica clássica da análise dos processos produtivos, que se apoia nas tradicionais relações custo vs benefício financeiro, propondo em seu lugar o balanço input-output da energia envolvida nesses processos. Por este prisma, negócios lucrativos, como a importação de bifes da Argentina para Portugal, revelam-se energeticamente desastrosos: a despesa energética para fazer chegar a “vazia” da vaca argentina a Portugal é idêntica ao valor energético da carcaça inteira!
Claro que este tipo de análises ganhou a inimizade imediata da agro - indústria e a profunda antipatia da indústria petrolífera, pois revelou que a população mundial deixou de se alimentar mediante o aperfeiçoamento das técnicas de captação de energia solar, para passar a consumir directamente combustíveis fósseis sob a forma de alimentos! No caso dos biocombustíveis, as reacções também não se fizeram esperar, e têm surgido inúmeras “cátedras” que, apoiadas em metodologias diversas, defendem ganhos líquidos significativos de energia decorrentes da sua produção ( Journey to Forever, " Is ethanol energy-efficient?.").

Mesmo que se opte por não tomar partido nesta polémica e se procure algures “na média” dessas oposições, por vezes extremadas, a “verdade”, a conclusão não é animadora, ou seja, legitima a presunção de que uma parte muito significativa dos biocombustíveis disponíveis contenha efectivamente menos energia do que a investida na sua própria produção! Isto é, em muitos casos e na melhor das hipóteses, estaremos numa mera dinâmica de troca de energia por energia.

Quando analisadas parcialmente e em abstracto, qualquer dos aspectos referidos anteriormente vale o que vale. Os problemas reais dos biocombustíveis surgem quando se chega à pratica e à necessidade de resolver “quanto, como, e onde”. É aqui que se evidenciam os sinais de que estamos perante uma magna farsa em cena. Com a tecnologia disponível, para produzir com milho etanol equivalente a 10% do consumo actual de gasolina dos EUA, seria necessário algo como cinquenta milhões de hectares, ou seja, dez Franças agrícolas não chegavam! Cá por casa merecia a pena que se estivesse atento ao exemplo da Galp, que ao divulgar que necessita de 700.000 ha para substituir 5% do consumo nacional de diesel por biodiesel de girassol, parece que nem se apercebe que está a referir-se à ocupação sistemática, ano após ano, da totalidade de área agrícola útil a sul do Tejo !

E é este o grande drama da generalidade dos problemas ambientais do nosso tempo e também da questão dos biocombustiveis: escala ! Tudo aquilo em que se pensa implica dimensões incomportáveis. Além disso, a agricultura não é como uma fábrica de parafusos, onde para mudar de orientação produtiva baste substituir as máquinas e reciclar o pessoal. Tem outros tempos de maturação e deve submeter-se a princípios de ordenamento estratégico e de racionalidade sem os quais o esbanjamento do capital de fertilidade do solo passa a ser um desastre com dia marcado. A preservação dessa fertilidade implica o cumprimento de regras de ocupação e de rotação de cultivos que o empresário agrícola não deve ser levado a mudar por razões meramente conjunturais. Quando tal acontece criam-se desequilíbrios regionais importantes, e acentuam-se assimetrias de vária ordem.
Em Portugal, por exemplo, ainda está viva a memória dos impactos negativos da que ficou conhecida como “campanha do trigo”. Ora a valorização económica ( artificial, porque subsidiada ) dos produtos agrícolas a partir dos quais é possível produzir biocombustiveis, promove oportunismos naturais que já estão a ter impactos: por um lado levando ao uso agrícola de terras marginais que eventualmente nunca deveriam ser usadas na agricultura ( o caso do óleo de palma na Indonésia e da soja na Amazónia , passado em revista no Herald Tribune de 27 de Março passado); por outro, induzindo lógicas de monocultura em solos que não a suportam ( os do Ferreira do Alentejo, p.e. - Expresso de 16 de Fevereiro ); finalmente, dando azo a processos que insuficientemente avaliados podem dar origem a novos e inenarráveis cascatas de problemas, como é exemplo a ideia peregrina de produzir biocombustíveis com algas ( Expresso de 19 de Janeiro ).

Sendo embora bem provável que num futuro não muito distante as performances associadas à produção e uso de biocombustíveis possam vir a ser significativamente melhoradas, a actual pressão política para a procura urgente da alternativas aos combustíveis fósseis, envolvendo importantes incentivos financeiros, faz da produção agro-industrial de biocombustíveis a partir de combustíveis fósseis um excelente negócio! Mais que na produção agrícola em si, estão em causa excelentes oportunidades de novos negócios na instalação das plataformas industriais necessárias à sua transformação! Nesse sentido têm vindo a ser induzidas dinâmicas de curto prazo cujas consequências estruturais são dificilmente reversíveis, mesmo quando o médio prazo vier a confirmar o que para muitos já é óbvio, isto é, que deste processo não decorrem mais valias energéticas significativas e que a questão quantitativa não pode ser contornada. O grande problema é, continua a ser, de facto, a enorme escala dos números actuais de consumo de combustíveis. Para essa ordem de grandeza, não existem alternativas!


17 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A análise do Pimentel faz sentido. Mas pelo que diz a única alternativa é reduzir o consumo dos combustíveis fósseis, dado que os outros, os bio, não trazerem mais-valia energética! Concordo... De facto, esta histórias dos automóveis é um exagero: tudo carros... Egoísmo atroz!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Afinal, andamos a ser enganados novamente: é tudo "treta" do mundo dos negécios e do capital? Sempre o eterno capitalismo e a sua gula por lucros! :(

Manuel Rocha disse...

Assim é ! Repare nas movimentações bolsistas em que os preços dos cereais estão sobre pressão inflaccionaista por conta, diz-se, da sua procura para biocombustivel, algo que, pelo menos até ver, ainda não corresponde á realidade ! É a economia dos "rumores". Alguèm larga a deixa de que a Venezuela pode cortar a produção de petróleo e o preço bate niveis históricos. É a "economia do diabo" de Sauvy no seu melhor...:))

antonio ganhão disse...

O que se insinua, como solução, passa por refundarmos a nossa civilização... pois a actual não se vai corrigir em termos de hábitos de consumo energético.

Ora existe uma tendência anti-social por parte do autor, pois quem põe em causa a nossa civilização é isso mesmo que é: um perigoso agente anti-social!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

No fundo, precisamos de imaginar uma política alternativa, bem elaborada e definida, de modo a acordar as pessoas para a verdade e a realidade. O "tempo eterno" é um adversário. Quase precisamos de recorrer novamente ao mito platónico das punições e recompensas eternas! Ele sabia que o "povo" é "metabolicamente reduzido". Por isso, não procurou argumentar, mas atemorizar. Esta a linguagem para as massas... Não vejo alternativa neste momento de derrota avolumada. (Curiosamente o cristianismo é acusado de ter inventado o inferno, mas este cristianismo é helenizado! Por isso, a sua crítica nunca poder ser destrutiva: perde-se a fé e a razão!) :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Não leve a mal o meu pragmatismo. Também é uma filosofia. Precisamos ser maquiavélicos... inteligência maquiavélica, como dizem os americanos. :)

alf disse...

O cálculo energético é muito importante porque a energia é um bem escasso. Não é o único, por exemplo, o CO2 é outro, mas isso não é importante agora.

Cada ser humano equivale a uma lampada de uns 100 W acesa dia e noite; a energia necessária para nos manter "acesos" ou vem do Sol ou de combustíveis em depósito na Terra.

Da energia solar só uma pequena parte conseguimos utilizar para acender a lampada que somos; isto estabelece limites ao numero de pessoas que pode existir, por isso a energia é um bem escasso.

Como a energia é o bem escasso, penso que o preço das diferentes fontes de energia, sejam alimentos ou combustíveis, podem acabar por ser apresentados por kcal. Que interessa o preço de 100g de bolachas? o que interessa é quanto custa cada kcal obtida a partir duma bolacha.

Uma situação em que gastamos mais energia do que a que é possivel obter a partir do Sol é uma situação de risco - estamos a viver da energia acumulada em combustiveis, mas estes são finitos.

Estas contas precisam de ser feitas com clareza porque elas estabelecem a relação entre o gasto médio per capita e o número de pessoas que pode existir.

o biodiesel é óbviamente algo que só tem significado de marketing e nenhum interesse real. Biodiesel é publicidade enganosa, como o é a teoria do aquecimento global. Serve outros fins, não os que anuncia.

Muito interessante e bem construido este post. Como é, aliás, costume.

quintarantino disse...

Ou seja, e em jeito de conclusão pergunta, parece mesmo que estamos "tramados", não é?

Chegamos ou estamos a chegar a um ponto em que, aparentemente, qualquer que seja a resposta são mais os inconvenientes que os benefícios. Ora, na mina lógica, e se assim é, isso é um prenúncio de morte!

Duma civilização tal como a conhecemos.

Tiago R Cardoso disse...

A pressão que de facto existe para que se avance com energias alternativas ao petróleo é demasiado grande para o grau cientifico que temos, isto é exige-se uma alternativa que neste momento é demasiado dispendiosa e irrealizável para substituir o petróleo.

O questão que se coloca é saber o que tem mais peso, não avançar por energias que ainda não comprovaram a sua eficácia, seja economicamente, seja energicamente (ter de se gastar mais energia para a conseguir, do que a receita que obtemos dela),ou asfixiarmos ambientalmente e economicamente, num mundo que estupidamente continua dependente de um produto finito ?

Faz-me confusão os foguetes e o alarido que se anda por ai a fazer com a descoberta de petróleo no Brasil e pela participação da GALP.É graças a estas descobertas que estou a imaginar cada vez mais dependência do petróleo e um desinvestimento em outras fontes, ou num continuar da pesquisa por elas.

joshua disse...

Só uma ruptura tecnológica, um corte epistemológico, decisivos nos poderão salvar de duas coisas: da dependência dos combustíveis tradicionais e do oportunismo maquiavélico de uma economia do Diabo que sobretudo norte-americanos dominam com mestria.

Tal como na questão da saúde face ao armamento, o esforço nesse sentido é ainda minoritário e irrelevante. Por isso ainda se diz que não se vislumbra.

Mas tem de haver uma saída e há se se remover o jogo do dinheiro e o respectivo aproveitamento das fragilidades energéticas globais.

PALAVROSSAVRVS REX

Manuel Rocha disse...

António,

Por isso mesmo conto consigo para não revelar as minhas coordenadas à ASAE....:))))

Francisco,

Mas por aí regressamos às malfadadas mitologias, reforçando as já em voga( aquecimento global...)! Não seremos capazes de melhor ?!

Alf,

Obrigado pelo magnifico complemento !

Essa sua metáfora da lâmpada é excelente porque certeira ao consumo energético do sapiens médio...:))


Quint,

Vamos lá a ver...tramados não sei se estamos, porque nada disto é linear e os sistemas complexos por vezes apresentam-nos resultados surpreendentes...mas este oferecer de "solução" que anda aí nas bocas do marketing e a encher os bolsos aos do costume, convinha que fosse desmontado...:((


Tiago,

Você toca num ponto fulcral para op debate ecológico: a rapidez da nossa acção! Andamos com tempos de resposta demasiado curtos para o tempo que ( não ) temos para apreeender o que é extremamente complexo.


Joshua,

Subscrevo-o! Costumo pensar em mudança de paradigma no contexto das suas palavras. JC talvez tenha sido um percursor nessa matéria, mas os "CEO" posteriores não terão tido as capacidades requeridas para lhe dar seguimento ao ambicioso projecto politico ...:((


Blue,

Sobre as questões que deixa eu costumo fazer o seguinte exercicio: imagino que a eficiencia geral dos BIO ( produção e tecnologia de uso )melhora em 50% nos prox dez anos! Então com os 50 milhões de hectares que hoje seriam necessários para produzir o equivalente a 10% da gasolina que os americanos usam, passariamos a produzir ( APENAS ) 20%. Mas como continuamos a falar de 50 milhões de hectares, este exercicio continua a ser uma mera abstracção !!

Talvez fosse tempo de deixar o padrão "ouro" para o papel moeda. Se a escolha fosse a Kcal outro "galo" cantaria...:)))

Quanto ao resto, o jornalismo actual é uma engrenagem do sistema...dali não são de esperar rupturas...:(

Rita disse...

Há uma razão pela qual lhes devemos chamar AGROcombustíveis em vez de BIOcombustíveis...a etiqueta "bio" tem sido usada e abusada para fazer as coisas parecerem mais puras mas os agrocombustíveis de puro só têm o facto de deixarem estéril o chão onde forem plantados. Deus me livre de pagar mais cara a sandes porque o sr. doutor quer andar a acelerar de mercedes, furo-lhe os pneus.
Manuel queria enviar-lhe um documento que disponibilizei no PolegarVerde mas não tenho o seu contacto... de qualquer maneira passe lá e faça o download, sempre se ri um bocadinho...espero eu.
Abraço****

Manuel Rocha disse...

Muito pertinente esta observação da Rita. A fraude desta questão começa logo no nome, é um facto...:((

quintarantino disse...

Ó Manuel, o amigo reformou-se?

Blondewithaphd disse...

Again we go back to the soil, always the soil!
Eu acredito que haja uma alternativa viável ao petróleo. Acredito também que este não será substituído antes de se verem exauridas as suas reservas. E como não acredito num fim de civilização espero paciente o fim da era petrolífera e a aurora de uma nova.

P. S. - Why not publishing on a paper format? Just a thought!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummmm... Vem aí mais um post! :))

Manuel Rocha disse...

Ó Quint, mas pensa que eu sou um "industrial" como você ?!

Isto aqui é empresa unipessoal e artesanal, homem...:)))

Além disso há dias o António reclamou por excesso de produção!!!

Blonde, Carissima,

Sim. Recursos limitados serão sempre uma limitação. É de bom tom não nos esquecermos disso, mesmo quando se tem Fé nos homens...:))

Paper format? Não, obrigado! A menos que me arranje um que tenha uma linha editorial inovadora, alheia a minundências e irrelevâncias e de contra-cultura...conhece ? Eu também não ! ::))))


Pronto, Francisco...já aí vai....:))