sábado, 9 de fevereiro de 2008

Razões de Potência

Para qualquer dos “saltos em frente” de todos os processos civilizacionais, os homens necessitaram sempre de ter resolvida a questão básica do seu aprovisionamento energético, isto é, de comida ! Nesse sentido a História do Homem poderia muito bem ser reescrita sob a égide da energia. De facto, as leis naturais que gerem as trocas de energia exerceram o seu primado antes de os homens terem produzido as suas leis da política ou da economia. E nos dias que correm a questão energética continua a ser central no debate político e económico, embora o economista a designe sob o genérico de “gestão de recursos” e o comum mortal muito pragmático o reinterprete segundo a prosaica noção de “ter ou não ter dinheiro”.

O aprovisionamento organizado de excedentes de energia teve e tem na agricultura a sua fonte de excepção. Os sistemas agrários da era pré-industrial, nomeadamente os que foram normalizados pela tradição romana na bacia mediterrânica, incorporaram na perfeição a ideia de “ecossistema de substituição”, ou seja, um ecossistema manipulado pelo homem e nessa medida artificial ( como são quase todos embora em graus variáveis) mas que preservava na sua dinâmica os princípios essenciais relativos às trocas de energia renováveis( sustentáveis ), ou seja, comida a troco de trabalho directo na sua produção.No entanto, e apesar de consideráveis progressos da técnica, o fluxo de recursos energéticos propiciado pela agricultura na sociedade rural, estava limitado pela capacidade de produzir trabalho ( potência) do homem e do animal de tracção. Assim, com uma capacidade limitada de “artificializar” o ecossistema agrícola ( na reposição da fertilidade dos solos a seguir a uma cultura, por exemplo ) as sociedades rurais funcionavam dentro de sistemas complexos de limitações cruzadas tendo por isso de se sujeitar a tempos-padrão de várias ordens. Esta sujeição, sempre conflitual, funcionava contudo como factor de auto-regulação, na medida em que em igualdade de condicionalismos geográficos e tecnológicos, colocava a quantidade de energia que uma sociedade era capaz de obter na dependência directa e muito próxima da capacidade de trabalho efectivo que os seus elementos eram capazes de investir na sua produção.

Em textos anteriores referi que a ecologia assume como adquirido que os ecossistemas que conhecemos não são “originais e imutáveis”, isto é, eles são o resultado de dinâmicas permanentes de alteração. Estas alterações decorrem de reorganizações das relações de força internas ao sistema, mas também podem ser causadas por factores externos que actuam nas zonas de contacto com outros ecossistemas, pois nenhum deles é entidade “estanque”. Referiu-se também que a mudança no interior de um ecossistema decorre dentro de faixas de tolerância limitadas por factores vários. Entre eles, velocidade e escala. Se num momento qualquer de um ecossistema em equilíbrio uma das espécies que o compõem domina uma técnica que lhe permite aumentar drasticamente a velocidade e a escala de captura de outra de que se alimenta, o sistema pode entrar em ruptura quando o ritmo de reprodução e crescimento desta deixam de ser capazes de responder à depredação da primeira.

Ora o motor de combustão interna e o uso do petróleo foram inovações tecnológicas que trouxeram ao ecossistema humano a possibilidade de acelerar drasticamente o seu ritmo num curto espaço de tempo. Com a assombrosa ordem de grandeza das potências que passaram a estar disponíveis, não só se alteraram completamente as antigas dependências, como a velocidade e a escala a que passou a ser possível agir sobre o meio mudaram inclusive a acepção tradicionalmente lenta do conceito de mudança.

Às limitações antes colocadas pelo tempos-padrão e pelos tempos de recuperação dos ecossistemas , a nova tecnologia respondeu com a potência. Se o factor limitante para o cultivo em anos consecutivos de batata na mesma parcela era o esgotamento do solo em fertilizantes como fósforo e potássio, a importação de fosfatos do Chile e a síntese dos adubos potássicos em unidades fabris foi a solução permitida pelas novas variáveis em jogo. Se o abastecimento de um determinado tipo de pescado está condicionado pelo ritmo de reprodução da espécie, deriva-se para a aquacultura, onde o peixe é alimentado com farinhas de carne e a água oxigenada e purificada através de complexos sistemas de bombagem e filtragem Se o cultivo de certas flores não era possível no Inverno europeu por falta de temperaturas, produzimo-las em estufas aquecidas e iluminadas artificialmente. Se na Europa não existem terrenos disponíveis para o cultivo de oleaginosas para biocombustiveis, produzem-se nos países ACP de onde depois se transportam para a Europa.

O controlo de muito mais potência trouxe pois consigo uma nova forma de ver o mundo, onde tudo passa a suceder de forma mais rápida e a uma escala cada vez maior, mesmo global. Alterou-se ainda a noção de tempo, que deixou de ser padronizado por acontecimentos de longa duração, pois entre uma decisão de dimensão faraónica e a sua materialização interpõem-se tempos cada vez mais curtos. Mas destas dinâmicas pós industriais decorrem duas grandes consequências: a aceleração exponencial do ecossistema humano, que assim tem submetido os ecossistemas complementares a continuas dinâmicas de ruptura porque actua sobre eles em velocidade e escala que excedem o seu tempo de recuperação (caso tipico das pescas), e a enorme ilusão de que o homem se teria finalmente liberto do primado das leis que regulam as trocas de energia. Não só não o fez como está delas mais dependente que nunca, pela dupla razão da enorme dimensão populacional que entretanto a espécie atingiu, associada à condição não renovável do modelo de aprovisionamento energético em que se apoiou esse crescimento e a sua civilização.

Portanto, para a ecologia humana, as grandes questões suscitadas pela interacção do Sapiens com o ambiente, não têm nada a ver com a “ordem natural” da sua essência, discussão há muito ultrapassada, mas antes com a potência, velocidade e escala a que presentemente decorre a sua intervenção sobre o meio. Nesse sentido tem perfeitamente identificado que se trata de um modelo de interacção assente sobre uma artificialidade que tem tanto de eufórico como de irresponsável e insustentável, pois basicamente estruturou-se como edifico que se constrói sem fundações, funcionando com consumos de energia de fontes não renováveis e confiando em que novos milagres tecnológicos conseguirão em tempo útil resolver essa limitação.

Concluindo.

Quando se fala, e bem, em políticas ambientais capazes de conservar os ecossistemas naturais e a biodiversidade, teremos pois de clarificar o discurso sob pena de pudermos ser lidos como defensores de um regresso às hortas e de mais sucedâneos dos famigerados parques botânicos e jardins zoológicos. Embora haja muito quem aprecie colocar nestes termos o problema para logo lhe rejeitar as incómodas premissas, não é de nada disso que se trata.

A permanência duradoura das civilizações depende, como sempre dependeu, de soluções de gestão dos ecossistemas de substituição e não de ecossistemas naturais. São desse tipo os que construímos ( agricultura, aquacultura ). Eles não são incompatíveis com a biodiversidade. Pelo contrário, podem e devem potenciá-la, até porque isso significa uma maior variedade de soluções capazes de dar resposta sem colapso às nossas necessidades. Estas, contudo, deverão ser revistas em baixa a partir de uma estratégia que repense um funcionamento em relação mais estreita com os condicionalismos geográficos locais de forma a que se reequilibrem prioritariamente nesse contexto as trocas de energia do ecossistema humano , ao contrário do que tem sido a tendência altamente deficitária observada na sequência da revolução industrial.

Um paradigma de interacção que não integre estes pressupostos e que sacrifique o rendimento à potência, só pode resultar em projectos de ruptura pré-datada o que, de resto, podendo ser dramático, nem sequer é nada de novo na história das civilizações.

16 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como sempre, gostei de ler este seu post, com o qual concordo. retenho duas ideias:
1)"Nesse sentido a História do Homem poderia muito bem ser reescrita sob a égide da energia." Uma tal história é bem necessária, até para sensibilizar as pessoas para estes assuntos ecológicos. Existe muita coisa sobre isso, mas falta efectivamente uma "História".
2) "O controlo de muito mais potência trouxe pois consigo uma nova forma de ver o mundo, onde tudo passa a suceder de forma mais rápida e a uma escala cada vez maior, mesmo global. Alterou-se ainda a noção de tempo, que deixou de ser padronizado por acontecimentos de longa duração, pois entre uma decisão de dimensão faraónica e a sua materialização interpõem-se tempos cada vez mais curtos." O "encurtamento do tempo", como costumo dizer, merece ser seriamente pensado, até porque se prende com o sentido da nossa existência humana. Existe uma ou outra filosofia do tempo, mas são muito técnicas. Santo Agostinho captou o tempo numa perspectiva mais interessante e é nessa linha que deveríamos caminhar.
Bom trabalho! :)))

Anónimo disse...

Mais um texto de elevado valor de divulgação de conhecimento.
Atrevo-me a sugerir que poderia ter dedicado mais umas linhas à relação entre rendimento e potência, questão que só aborda em tópico no fim. Mas agora que o escrevo ocorre-me que talvez o tenha feito assim para deixar a porta aberta para uma próxima postagem...
É muito boa a forma como consegue articular conceitos de alguma complexidade neste formato necessariamente condensado.

Trigo Pereira

Manuel Rocha disse...

Francisco:

Há de facto uma noção da pessoa como "elo" de uma cadeia do tempo que se diluiu, e isso reflecte-se em tudo...

Trigo Pereira:

Viu bem...lá iremos que essa questão já não cabia...:))


Blue:

Sim, as fronteiras não são claras porque o "100% natural" não existe enquanto tal.
O limite de que falas está na falta que o Trigo Perteira detectou e que é a "lei dos rendimentos decrescentes". Há um momento a partir do qual a quantidade de energia que tu retiras dum sistema deixa de ser proporcional à que lá investes, e passa a ser decrescente. Não fosse a economia monetarista e essa gestão seria completamente alterada, porque há ecosistemas de substituição cuja rentabilidade energética é francamente negativa ( horticolas ou flores em estufa nesta altura do ano aí onde estás, por exemplo ).

A resposta à tua segunda questão passa pelo que escrevia antes, pois há uma interminável série de lógicas movidas a cifrões e a não a Kcal ! Ainda há dias falavamos dos "rojões ou feijões". Passa por esse tipo de racionalizações: não faz sentido trocar 100 ( valor energético do feijão ) por 50 ( valor energético do porco que o comeu )!

As rupturas fazem parte da lógica do sistema. Sempre assim foi. O que não se antecipa é até que ponto elas podem ir quando induzidas por causas múltiplas, pois tudo "isto" é um só ecosistema e as reacçõe em cadeia também fazem parte...:((

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

BlueGift

Não estou assim tão seguro da adaptabilidade humana e ainda por cima "feita" a ritmos acelerados. Há preços a pagar e eles começam a ser evidentes: perturbações mentais, stress, cancros, criminalidade, atrofia cognitiva, alienação, falta de contactos sociais, perturbações de desenvolvimento e crescimento anómalo, obesidade, doenças profissionais, problemas de coluna e de visão, intoxicações de todo o género, anorexia, DST, envelhecimento, já para não falar dos eco-efeitos e económicos nefastos. A menos que se deseje este tipo de "humanidade" pouco interessante!

Manuel Rocha disse...

Blue,

Relativamente ao teu segundo comentário ( que ainda não tinha lido ) o que gostava de ter deixado claro é que a potência de intervenção conseguida decorre de um gasto de capital ( petróleo )que não é recuperável.
De resto como já tenho dito não me preocupa particularmente nem o futuro do Planeta nem o da humanidade. A questão como a coloco é do ponmto de vista da ecologia para a tão parlada sustentabilidade do modelo civilizacional do Ocidente, apoenas isso ! Porque há limites fisicos para o crescimento identificados desde os tempos de Malthus e depois com mais rigor por Meadows ainda nos anos sessenta. Em ecologia chama-se a isso "capacidade de carga". As "latrites" de vastas regiões agricultadas em Africa e na América do Sul são claro exemplo desses limites ao crescimento. Ao contrário da ideia que muita gente pretende vender, situações como a do Darfur não são meros conflitos étnicos...:((
:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Não percebi a associação Dafur e ecologia! Excesso populacional? Mas há outros factores mais animalescos. :)))

Manuel Rocha disse...

Francisco:

A associação de ideias tem a ver com o esgotamento do potencial agricola do sul do Sudão na produção sistemática de algodão para exportação, pela via das politicas coloniais britânicas. 4/5 dos solos agricolas do território "latrinizaram" sob o efeito da agricultura industrial. O principio dos problemas que lá se vivem há anos tem a ver com o éxodo dessa população "deserdada" da terra ...depois, bem...é o que sabe da habitual conjugação de oportunismos. Mas subjacente a tudo está de facto um desastre ecológico de dimensão biblica. E não é o único. De resto boa parte da pressão migratória sobre a Europa bebe em fenómenos embrionários com o mesmo perfil.

Rita disse...

Manuel,
Concordo a 110% com o que escreveu. Se temos que ter cuidado para não sermos mal interpretados no nosso discurso ecológico, também temos que manter na ordem aqueles que não o conseguem fazer e deitam por água abaixo anos de educação ambiental com as suas "radicalices", e ainda aturar quem consegue pegar num argumento ambientalista lógico e ver lá um elefante só porque lhe dá jeito à carteira. Com tanta motivação, às vezes ocorre-me que o regresso às hortas era mesmo o que eu precisava....

Manuel Rocha disse...

Rita,

Quando precisar de uma horta para "desabafar", disponha...é só fazer-se à estrada que as favas já pedem cava, os morangueiros têm que ser transplantados e há alfaces para plantar...:)))

Quanto ao resto, nunca se esqueça que como "irredutível gaulesa" tem obrigação de resistir agora e sempre ao "invasor"....:))

Rita disse...

O que fazem uns graus de latitude de diferença! Os meus morangueiros estão na varanda, raquíticos e tímidos a começar a espreitar da terra, e eu até dei uma ajudinha fazendo uma mini-estufa de plástico para os proteger das geadas do Porto, senão nem isso...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

BlueGift

Não sei se estamos melhor ou pior, até porque existem tratamentos mais eficazes, mas que surgem uns casos preocupantes lá isso surgem. Muitas doenças surgem, outras ressurgem com mais força... Desafio permanente! Eu não me queixo pessoalmente de nada; apenas detesto a corrupção! E da qualidade de sua vida cada um lá sabe... Mas não vejo as pessoas alegres... :))

quintarantino disse...

Manuel Rocha, grande e enorme amigo, com estrondo regresso para que assim possa ser desculpado destas imperdoáveis ausências.

“Comida – uma explicação do caminhar da História”, Manuel Rocha, Edições Bolinas, 2008.

Confesso que inicialmente se fica confuso com a leitura do preâmbulo. É que a abordagem parece que via no sentido da Energia e, afinal, manda-nos para a Comida.
Mas com o avançar da dissertação percebe-se onde o autor quer chegar.

É um estudo que cai bem aos ecologistas mais radicais (“se num momento qualquer de um ecossistema em equilíbrio uma das espécies que o compõem domina uma técnica que lhe permite aumentar drasticamente a velocidade e a escala de captura de outra de que se alimenta, o sistema pode entrar em ruptura quando o ritmo de reprodução e crescimento desta deixam de ser capazes de responder à depredação da primeira”) e pode merecer encómios dos defensores da racionalidade e da progressão geométrica do Homem cavalgando a técnica.

O autor sustenta a sua explicação com recurso a exemplos de escola mas que merecem que sobre eles incida uma nova luz.

Talvez mais como referências âncora para um novo modelo de desenvolvimento harmonioso, sustentado e sustentável.

Um autor a seguir com cuidado.

Manuel Rocha disse...

Ahaha !

Quint,

Vejo que continua em grande forma....:))))

E se bem captei o seu recado há "notas prévias" que se impõem a este tipo de textos...lá iremos, Meritissimo !

antonio ganhão disse...

"A permanência duradoura das civilizações depende de soluções de gestão dos ecossistemas de substituição e não de ecossistemas naturais. Eles não são incompatíveis com a biodiversidade."

Ah! Finalmente! Eis a harmonia e a sustentabilidade que eu ainda não tinha descoberto na tese do autor... já tinha percebido que não era o regresso às hortas.

Temos que refundar a ecologia? Hum... isso vai-lhe acrescentar mais uns quantos inimigos...

Manuel Rocha disse...

António,

Mas olhe que uma horta é um "ecossistema de substituição".!!!

:)))

antonio ganhão disse...

Ora, bolas!