terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Harmonia natural ?

A ideia de “ harmonia natural” é proposta quando se pretende tipificar uma relação ideal com o ambiente. E recorre-se ao conceito de “equilíbrio” como sinónimo desse estado. No entanto, o uso desta analogia entre conceitos, e os próprios conceitos em si, podem conduzir a uma ideia deformada das características dessa relação com o meio.

Basicamente estamos perante a oposição entre duas lógicas de interacção. Uma de ordem humana, dita não natural; a outra, uma ordem não humana, logo, natural. Mas, a menos que se acredite numa terceira lógica pré-determinada ( do tipo “desenho inteligente”, p.e.) não há como separar a dinâmica de dominância que os homens empreenderam de outras de idêntico teor empreendidas por qualquer outro ser vivo, que só não terá atingido a hegemonia alcançada pelos humanos devido a limitações próprias à espécie ou a resistência alheia.

À primeira vista a questão pode parecer meramente académica mas, como tentarei demonstrar, tem outras implicações muito importantes na definição das nossas atitudes e eventualmente na nossa concepção das melhores políticas ambientais.


Temos de “harmonia” noções de ordem e concórdia agradável. E de “equilíbrio” noção de estabilidade num sistema. Assim, quando nos referimos a uma “harmonia natural” como “estado de equilíbrio na relação do homem com a natureza”, somos conduzidos a uma ideia do homem vivendo num contínuo agradável e sem sobressaltos, num ambiente que cada um idealiza segundo a sua própria concepção do “ paraíso ”. E se é verdade que há quem tenha do "paraíso" o entendimento de um sonho desejável, também não há menos quem o veja como algo que foi e já não é.

No entanto, o conceito de “ natureza” da ecologia não respeita a uma entidade parada num tempo e espaço ideais. Ele refere, sim, uma entidade dinâmica que se altera ao longo do tempo concreto e nesse processo altera também o espaço em que acontece – o ecossistema. Por sua vez, o conceito de equilíbrio não é utilizado para designar, como na física, um sistema de forças que se equivale. Por exemplo, dois pesos exactamente iguais e imóveis num balancé. Pelo contrário, ele integra uma noção de comportamento dinâmico. Assim, equilíbrio num ecossistema é a noção que se usa para dizer que as trocas de energia ( produtores vs consumidores ) no seu interior se compensam.

O que atrás foi dito não significa que durante a existência de um ecossistema em equilíbrio não ocorram fortes oscilações no seu interior, como épocas de fome ou períodos de quebra demográfica de uma espécie e crescimento anómalo de outra. Quer apenas dizer que essas oscilações ocorrem dentro de uma faixa de tolerância que não é fatal para os organismos que ali interagem e que por isso não compromete o sistema no seu todo ( conceito de capacidade de carga ). Voltando à metáfora do balancé, é o que acontece quando duas crianças de pesos semelhantes alternam a sua posição relativa com a ajuda do impulso das pernas - oscilam de forma alternada e irregular, mas só dentro dos limites do movimento que a estrutura do próprio balancé permite. Ou, se se preferir outra imagem, seria como um ponto imaginário evoluindo ao longo de uma mola deformada. Pelo que a ideia de “harmonia”não tem aqui cabimento.

Portanto, um ecossistema em equilíbrio não é exactamente o ambiente em que qualquer uma das espécies que o integram tem uma existência tranquila e uma interacção neutra, pacífica, expectante, com as restantes e com o meio. É característica das espécies modificarem o meio para nele se “encaixarem” procurando reunir as melhores condições possíveis para a sua sobrevivência ( nicho ecológico ), exactamente como o fez e faz o Homem. Esta dinâmica decorre num sistema complexo de condicionalismos recíprocos em que a componente geográfica tem um enorme peso e é inerente à vida.

No entanto, se concebermos o fenómeno "vida" como uma longa metragem, a percepção que dele conseguimos é próxima da que pode ter de todo um filme quem dele veja apenas uma única fotografia publicitária. E daí a ideia errada de que os ecossistemas naturais são sempre equilibrados e ainda de que apenas estes o são. Errada porque os ecossistemas que conhecemos não existem desde sempre tal como os vemos, nem são imutáveis. Os que existem são substituição de outros anteriores a eles por força da conjugação de forças várias que os modificaram para neles criar o seu próprio nicho, e que se mantêm activas e reactivas, mesmo quando sobre eles não se verifica qualquer acção humana.

Por isso, da noção de ecossistema, à ecologia humana interessa sobretudo o conhecimento dos princípios centrais que gerem o seu funcionamento nas faixas de tolerância onde o homem encaixa. A ecologia humana não tem questões pendentes com a “natureza” do ecossistema humano. Já o mesmo não se poderá dizer quanto às questões de potência, velocidade e escala que lhe estão associadas. E esse será o assunto do próximo post.

10 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gostei de ler este seu post: um "must" conceptual! :)
Concordo com a ideia que defende, embora não veja necessidade de opor equilíbrio (instável, termodinâmico) e "harmonia". Aliás, este conceito de harmonia tem um longo e rico perfil epistemológico, que pode ser politizado. Também a hormonia pode ser e é dinâmica, uma força capaz de impedir a destruição do homem. Mas, não sei, é necessário pensar mais, talvez no sentido de defender uma atitude mais harmoniosa do espírito humano com a natureza, que também é a nossa natureza.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Agora reli e fiquei com uma dúvida: equilíbrio não é um estado estático, mas um processo dinâmico que inclui até mesmo rupturas, mudanças de equilíbrio. Diz que na ecologia ele pode ser visto como "compensação". Certo, nesse caso a acção humana, movida pelo interesse capitalista, pode produzir uma grande "descompensação", a qual ameaça a própria espécie humana. Em termos políticos, podemos ver nisso uma desarmonia, isto é, uma das forças descompensa as outras forças em cena. Talvez a harmonia esteja mais na visão humana do que na natureza, embora os cientistas gostem de falar nas simetrias, harmonias, etc.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E, neste caso, estamos (suponho) na faixa da "intolerância", até porque não damos tempo a natureza para restabelecer novos equilíbrios capazes de garantir a qualidade de vida, humana e outras vidas. Penso que tratará deste assunto a seguir e concordo com a sua perspectiva. :)))

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Coincidimos.

Na sua leitura no segundo comentário está a ideia de fotografia retirada de um longo filme.

As descompensações a que se refere são consequência da atitude e do controlo sobre as variáveis que quero abordar no próximo post: potência, velocidade e escala. Qualquer delas se moficou drasticamente no pós revolução industrial.

Tiago R Cardoso disse...

"É característica das espécies modificarem o meio para nele se “encaixarem” procurando reunir as melhores condições possíveis para a sua sobrevivência (nicho ecológico), exactamente como o fez e faz o Homem."

Este encaixar que escreveu no caso do homem não seria destruir todo o equilíbrio, tirando o máximo partido do sistema ?

O grande problema é que quando o sistema estiver esgotado, o homem não terá para onde ir.

Manuel Rocha disse...

Blue,

Podemos pensar nisso...:))))

Tiago,

O "problema" desta nossa espécie é que acedeu a uma arma ( a técnica ) que conseguiu libertar o individuo da satisfação imediata das suas necessidades de base. Sobra tempo, criam-se outras supérfluas e eis a bola de neve a rolar encosta a baixo...:))~
Como dinâmica de ecossistema, esse comportamento não tem nada de especial. Mas depois é como diz,é estranho que a espécie que reivindica para si toda a racionalidade do mundo pressista em lógicas de esgotamento de recursos...:(

quintarantino disse...

Manuel, vou começar por o citar:

"É característica das espécies modificarem o meio para nele se “encaixarem” procurando reunir as melhores condições possíveis para a sua sobrevivência (nicho ecológico), exactamente como o fez e faz o Homem."

Penso que o Homem de há uns tempos a esta parte, muito graças ao domínio da técnica e à incapacidade em por travão à sua vaidade consumista, apenas se preocupa em conseguir reunir as melhores condições posséveis já não para a sua sobrevivência (no sentido de um devir), mas para a sua vivência no dia-a-dia. Hipotecando, talvez, de forma irremediável o seu futuro enquanto espécie.

Penso que os limites de que fala são conhecidos, mas foram esquecidos.
A harmonia com a Natureza era, quanto a mim, essa posição não de um "bom selvagem" mas de retirar dela os benefícios necessários à nossa existência, mas em respeito com a mesma.

Se preciso de um peixe, não necessitaria de pescar cinco, pois não?
Ou se já comi um bife, porque carga de água preciso de um rodízio?

Tiago R Cardoso disse...

Rodízio, alguém falou em rodízio ?

Vamos lá debater sim senhor, agora nada de dizer mal do pobre do "rodízio", além disso estou com fome...

quintarantino disse...

Manuel, perdoa ali ao jovem estouvado que vê no rodízio o néctar da gastronomia!

antonio ganhão disse...

Será que a natureza é só harmonia? Não existem porventura fracturas e mudanças radicais?