sábado, 2 de fevereiro de 2008

Ferro e Fogo


As análises comparativas parece estarem na moda. Usam-se entre escolas como entre países, e com elas pretende-se avaliar performances em registos que variam de acordo com os propósitos do “analista”, mas poderá dizer-se com alguma segurança que “servem para tudo e para o seu contrário".

Algumas análises feitas a partir de premissas comparativas são deveras pertinentes . Outras nem tanto. As situações mais complicadas ocorrem quando as comparações não se limitam a verificar as diferenças, e pretendem identificar as suas causas. Nestas abordagens, no entanto, existem algumas noções que importa ter presentes. Desde logo, a de que as sociedades são algo mais que uma panóplia de reagentes em condições laboratoriais. A segunda, é a de factor limitante.

Quando os agrónomos procuram uma forma simples de explicar a alguém os princípios da fertilização vegetal, recorrem com frequência a um exemplo de fácil compreensão. Imagina-se uma barrica daquelas antigas construída com várias aduelas de madeira. Facilmente se percebe que se uma só delas for mais curta que todas as outras, será apenas até ao nível dessa que se consegue encher de água a barrica. A aduela mais curta é a noção de “factor limitante” - aquele de cuja resolução depende a performance de todos os restantes. A produção de uma seara, por exemplo, não aumenta ( nível de água na barrica ) enquanto o teor de fósforo( aduela mais curta ) no solo não atingir o nível necessário, mesmo quando todos os outros nutrientes ( restantes aduelas ) estejam disponíveis nas quantidades satisfatórias.

Na seara, com análises de solo e foliares, até já vai sendo possível a identificação desses factores limitantes. Na sociologia, nem tanto. E daí que muitas vezes nos atarefemos todos a resolver bloqueios sociais que não se conseguem resolver pela simples razão de que não se identificou o factor limitante, a "aduela mais curta".

Procuremos um exemplo neutro.

Aparentemente não há divergência entre antropologia e história quanto à importância do domínio das técnicas do fogo e dos metais no progresso civilizacional. Ambas estão de acordo em que a posse de utensílios metálicos foi acelarador desse processo, devido à sua superior performance enquanto ferramenta capaz de ajudar o homem a moldar o meio em que vive.
Qualquer pastor de cabras das serranias da Panasqueira ( triângulo das pirites de Aljustrel ), sabe que se num dia frio e seco de inverno em que esteja uma aragem de norte, juntar uns bons cepos de azinho bem seco e fizer uma fogueira em cima duma talisca miúda, na manhã seguinte, quando for remexer nas cinzas, encontra lá no fundo uma plaquinha metálica. Sabe, além disso, que se passar o resto da manhã a fazer passar a dita por uma pedra de grés consegue uma lâmina, e se passar a tarde a amanhar um raiz de urze para lhe servir de cabo, ao fim do dia tem uma faca.

No entanto, esta ocorrência de minérios facilmente metalizáveis em afloramentos à superfície, não é um acontecimento geográfico frequente. Além disso, a possibilidade de dispor de madeiras duras de elevado potencial calórico ( necessário para fundir os metais ) também não é uma ocorrência frequente, sobretudo no estrato arbustivo onde, na ausência de ferramentas adequadas, ela teria de ocorrer.. Acresce que as condições climatéricas também têm neste processo a maior importância, pois em condições de elevado teor de humidade ambiente, a tal fogueira já não teria a mesma performance térmica.

Isto para dizer que à partida, seria sempre muito mais sensato apostar no antepassado do pastor alentejano como descobridor casual do metal e inventor do machado, que no Índio Ianomani , que, na Amazónia, embora dominando o fogo, viveu em condições permanentes de elevada humidade ambiente, sem afloramentos de minérios de ferro, nem madeira de elevada performance calórica no estrato arbustivo .

Neste exemplo comparativo, ao progresso social do Índio obstaram factores limitantes que podem ter-se constituído em bloqueio civilizacional.

Contudo, nada garante que, mesmo em igualdade de condicionalismo geográfico, os processos sociais de índios e alentejanos tivessem sido idênticos. E isto por duas ordens de razões. A primeira, tem a ver com o facto de que os seres vivos em geral e os homens em particular não serem agentes passivos na história. Isto é, perante estímulos idênticos, grupos distintos não reagem de igual forma, e o mesmo grupo raramente reage duas vezes seguidas do mesmo modo. A outra razão é a casualidade.

Perante a mesma chapinha metálica no fundo da fogueira da véspera, enquanto o antepassado alentejano da nossa ficção se teria lembrado a friccioná-la repetidamente contra uma pedra de grés e assim criou uma lâmina, o Ianomani poder-se-ia ter lembrado a manufacturar um brinco. As distintas motivações de um e outro e os processos diferentes que seguiriam a partir daí, podem ter por denominador comum apenas isso: uma casualidade distinta num momento chave.

O sucessivo entrosamento de casualidades e factores de natureza positiva, potencia os ciclos virtuosos. Mas as casualidades e os factores sociais também se podem associar de forma negativa em ciclos viciosos.Na perspectiva do tempo-longo da história, todas as sociedades viveram dinâmicas de ciclos virtuosos e viciosos. Não fosse assim e ainda hoje seriamos a Lusitânia Província do Império Romano. É evidente que as sociedades sempre se esforçaram por potenciar os primeiros e anular os segundos. Mas se o sucesso dessa empresa muitas vezes se pode atribuir a uma correcta identificação e acção sobre os factores limitantes, não deixa de ser verdade que a casualidade e o imponderável têm no processo social um peso incontornável e dificilmente controlável.

8 comentários:

Fernando Dias disse...

Interesante análise e metáforas das dinâmicas de ciclos virtuosos e viciosos.

Esta leitura trouxe-me à mente outras metáforas. Por exemplo: há pouco, disse a minha mulher para deitar mais batata, cenoura e couve no cozido porque me sabiam bem para contrabalançar a força das carnes. Não sei onde é que eu fui buscar isto.

Mas isto por outro lado fez-me lembrar os estratagemas para optimizarmos necessidades imediatas de energia e calor. À minha filha que estava com frio e a tremer depois da natação dei-lhe uma barra de chocolate; Minha mãe que um dia destes, despois de o sol se pôr, começou a queixar-se de mãos e pés frios, pediu-me um prato de sopa quente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"A ferro e fogo" era um título mais forte, porque fazia lembrar a obra de Warren Dean sobre a devastação da mata atlântica brasileira. :)
Como disse o F. Dias, belas metáforas dinâmicas que soube usar com mestria neste seu penetrante post. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gostei da referência que faz aos índios Yanomami, porque me fez ir reler Jacques Lizot e o seu Círculo dos Fogos. Entre os alentejanos e os Yanomami, prefiro estes últimos, as suas guerras e alianças, os seus sortilégios e devoradores de almas! Espevitam a mente! :)))

Anónimo disse...

O acaso tem vantagens (p.e. especiação/ocupação de nichos diversificados) desde que haja seleção natural. Ou seja, aproveitarmos as oportunidades que surgem e deixar cair as que não dão resultado.
O imponderável resultará possivelmente de um défice de (in)formação.

O problema português será talvez uma cultura pouco diversificada, no sentido em que como nos demos bem com o sol e praia, reservas dos emigrantes e economia protegida, quando a receita começa a falhar é dificil arranjar alternativas. Só sabíamos fazer brincos.

Manuel Rocha disse...

Fernado Dias,

Interessantes são essas suas metáforas. Estaria a pensar num género de sabedoria inata, quase institiva que, à semelhança do que acontece noutras espécies, parece vir pre-determinar comportamentos ? :)


Francisco,

Aqui entre nós acho que derivei um bocado ao lado do que o titulo sugere...:)) mas olhe, não me ocorreu nada melhor...:))

Sim, quanto ao resto...mas não esqueça que há um enorme mistério por detrás de cada alentejano...eu acho que são das subculturas menos transparentes que conheço...nunca se sabe ao certo o que lhes vai na alma...Manuel da Fonseca, retratava-os, a meu ver, bastante bem...


Blue,

Obrigado pela gentileza...:)

A casualidade e o imponderável são por natureza imprevisiveis, por isso não fique pessimista. O totoloto sai sempre de repente ...:)


Osvaldo,

Hoje deixa-me sem resposta. Há no seu comentário algo a que quero aderir e uma reserva que não sei dizer...Acho que vou precisar de "dormir" sobre a pertinente questão da selecção da diversidade...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Manuel

Está muito caladinho! :(

quintarantino disse...

Manuel, qualquer dia a ferro e fogo anda a "piolheira" e, mesmo nessa altura, creio que a maior parte de nós continuará a pensar que é com o vizinho do lado.

Anónimo disse...

Bem escriuto

Joshua