Sei por experiência que um dos temas mais agrestes para se abordar é o da energia. Talvez isso se deva ao facto de não materializarmos a sua constante presença nos nossos automatismos quotidianos, ou de o fazermos mas preferirmos não pensar nisso porque ninguém gosta de se pôr em causa.
No entanto, são as trocas de energia e as suas mudanças de estado que mantêm o mundo em movimento. Desde sempre a humanidade tem vivido subordinada à ditadura da energia e têm sido as soluções que as sociedades têm encontrado para a controlarem os verdadeiros motores da história.
É normal que a nossa noção de história se confunda com a dos passados documentados. Por isso a documentação romana sobre métodos e práticas agrícolas é frequentemente referida como a primeira estratégia organizada de controlo da produção da energia pela via da racionalização metódica da agricultura. Hoje sabe-se que eles se limitaram a passar a latim conhecimentos herdados de egípcios e mesopotâmios, entre outros, mas não é esse o meu ponto.
A questão é que muitas vezes caimos na simplificação de atribuir o sucesso de uma civilização a uma ideia e descartamos a forma como ela foi posta em campo. No caso concreto dos romanos é bom recordar que os registos históricos documentam à saciedade a forma como era usado o trabalho escravo. Basicamente, foi este aporte de energia exterior ao sistema que lhes permitiu a prosperidade que os patrícios festejavam em infinitas orgias, ou nunca teriam passado de uma sociedade rural remediada.
É evidente que o modelo não foi exclusivo dos romanos, tendo sido usado por muitos outros antes e depois deles, mas fiquemos por aqui porque basta para o que pretendo.
A grande novidade da revolução industrial em termos civilizacionais, é que sem mudar as regras do jogo mudou as peças no tabuleiro de xadrez, isto é, aquilo que até ali tinha sido resolvido a trabalho braçal ou com o binómio homem-animal, passou a ser resolvido pela máquina a vapor e logo de seguida pelo motor de combustão interna e suas variantes.
Estas inovações tecnológicas trouxeram às sociedades que as passaram a usar um contributo decisivo para o salto civilizacional que registaram, a saber, o controlo sobre quantidades enormes de energia e a capacidade de as usar em potências, velocidades e escalas antes inimagináveis.
Mas as diferenças metodológicas entre o Ocidente de hoje e a Roma de há dois mil anos ficam-se por aqui, pois no essencial ambas suportam o seu ascendente no controlo e incorporação no seu sistema social de uma fonte externa de energia. Distingue-as no entanto a substância dessa fonte. É que enquanto a energia extra usada pelos romanos era renovável, pois os escravos reproduziam-se ou conquistavam-se, os combustíveis fósseis não são renováveis ou, em rigor, não o são em razão proporcional à que os usamos.
Portanto, quando Pimentel e outros resolvem pôr em balanço a energia que usamos vs a energia de que necessitamos, contabilizando nesses cálculos as fontes externas não renováveis incorporadas no processo, não estão a misturar alhos com bugalhos. Estão antes a alertar-nos para os limites objectivos do modelo civilizacional em que existimos.
Talvez valha a pena clarificar que um homem mesmo deitado é uma máquina que está permanentemente a usar energia. Usa-a para respirar e para manter os vários subsistemas metabólicos em funcionamento. Como não é auto-produtor, precisa de a retirar constantemente de um reservatório qualquer. No último século, em vez de se maçar a gerir Spartacos e outros que tais com irascíveis crises de personalidade, o sapiens moderno construiu gasolineiras e vai lá abastecer. O problema é que o reservatório não volta a encher!
O europeu médio teve em 2007 um consumo per capita equivalente a cerca de quatro toneladas de petróleo (pouco mais de metade do americano). Mas há uma conta que mesmo o europeu médio que gosta de acordar para o lado esquerdo detesta fazer, que é multiplicar este consumo pela população mundial! É que o resultado é uma potência de dez tão absurda que não há cabecinha pensadora que consiga vislumbrar onde poderiam estar os recursos para a viabilizar!
E é neste ponto que, a bem da necessária convergência entre o discurso e a acção politica, temos de nos resolver. Podemos simplesmente discutir no conforto da blogosfera se a melhor escolha dos americanos é o Obama ou a Hillary, efabular em redor de eufémicas soluções fiscais para reduzir a dependência do petróleo, ou mesmo sobre as formas de energia que deram origem ao Universo. Ou então fazemos alguma coisa bem ao nosso alcance como consumidores, e começamos por descartar da lista de compras a interminável panóplia de todo o tipo de supérfluos em que, de facto, se estribam as assimetrias que criticamos de forma tão violenta às mesas dos Majestics do nosso comodismo, típico de prósperos patrícios.
17 comentários:
Acabo de passar um par de horas deveres agradável em redor dos seus textos. Novata nestes caminhos, confesso-me agradavelmente surpreendida pelo estilo, lucidez, humor, intelegibilidade e acutilância do que escreve. Partilho as suas preocupações e admiro o esforço que faz para as divulgar. Mas receio que não seja este o caldo de cultura propício para isso, a avaliar pela generalidade dos comentários que revelam as preocupações pelo aparente que nos dominam os dias.
Voltarei.
Maria
Eu sou pelo reaproveitamento do Gás-Humanígero e pela criatividade em tudo.
Abraço
PALAVROSSAVRVS REX!
A questão reside no modelo de sociedade que operam actualmente no mundo, em particular no Ocidente. Os animais metabolicamente reduzidos, como lhes chamo, gastam energia, ou melhor, queimam energia, sem a merecer. O planeta está a ficar esgotado e alterado e nós humanos continuamos a manter um modelo perigoso. Os escravos não poluiam... De qualquer maneira, iremos ser forçados a fazer algo substancial ou a sofrer as consequências da nossa irracionalidade. Determinadas ideologias têm a sua elevada culpa neste processo destrutivo.
Maria:
Obrigado pelas suas palavras.
Penso que as ideias têm de ser humildes o suficiente para se adptarem a qualquer caldo de cultura. As minhas esforçam-se por isso. Se produzirem algum efeito, optimo. Senão, certamente isso também se deverá às limitações que elas inevitavelmente encerram.
Joshua:
Essa gás parece-me simpático. Diga-me onde o encontro sff ::))
Criatividade ? Evidente que faz imensa falta. É bom saber que há quem veja isso.
Francisco:
Comentar as suas linhas dava outro post :)
Vou conter-me ao essencial.
Mais que o modelo a mim parece-me preocupante o paradigma que o constroi, género de versão revisitada do "americam dream".
Quanto às "ideologias" vigentes, noto-lhes sobretudo a incapacidade de descolarem de um capitalismo naturalmente amoral e com uma invejável capacidade de se travestir do que quer que seja para seguir caminho e continuar a marcar a determinar a história.
Apreciei a subtileza da "lição" de humildade, porque a senti genuina.
Prometo que me penitenciarei pela arrogância. Há por aí outras bem piores que a minha, mas não quero que me sirvam de desculpa ( risos ).
Maria
"E é neste ponto (Mas há uma conta (...), que é multiplicar este consumo pela população mundial! É que o resultado é uma potência de dez tão absurda) que, a bem da necessária convergência entre o discurso e a acção politica, temos de nos resolver"
Será que posso interpretar o texto anterior por "As políticas têm de ser o reduzir a população mundial por uma potência de dez"?
Muito pertinente, Osvaldo.
Não. Não foi nisso que pensei.
Pensava nos termos em que conceptualizamos a equidade social. Se nós temos direito a 4 t per capita, então TODOS têm. E para todos óbviamente não dá!
É bem provável que sem a variável energia fóssil, que suporta a agricultura industrial, a equação da produção de alimentos sofra tal rombo que a governança se veja na contigência de reabilitar as politicas demográficas de Mao. Há de facto quem diga que a capacidade de carga do sistema para a voragem de recursos do sapiens sapiens está no limite.
Mas o que pretendia mesmo era colocar em evidência aquilo a que certa avant-garde da sociologia e da economia francesas chama de "decroissance", querendo com isto significar que a gestão da coisa económica atingiu patamares de irracionalidade de tal ordem que se torna necessário pensar sériamente em reduzir. O que nem sequer é novo, pois isso já o tinham dito os do Relatório Meadows nos finais dos anos sessenta.
Por mim, bastaria que isso sucedesse em relação ao que é de facto supérfluo para que os resultados se vissem.
Obrigado pelo comentário.
Manuel Rocha,
Quer dar-nos um exemplo de coisas que considere " de facto supérfluoas" ?
Obrigada pela resposta.
Matilde Costa
Matilde:
A Senhora é das cometadoras mais exigentes que tenho por aqui :))
Só dois ou trés exemplos de uma lista interminável.
Precisa mesmo da garrafinha de Actimel ? E do pacotinho individual de leite achocolatado ? Temos mesmo de mudar de "recheio" do roupeiro pela ditadura da moda ?
O peito de perú, tem mesmo de ser comprado na embalagem de esferovite plastificada ? Que há de errado com a água da torneira que já só se bebe da engarrafada ?Será que não se consegue viver sem a agenda electrónica? O gatinho de estimação, precisa mesmo de diet food ? Não basta que coma menos ?As fraldas descartáveis são algum tipo de imperativo higiénico ? E que se passa com os estendais de roupa que estão a ser banidos das fachadas ? Será que neste santo clima nos é mesmo imprescindível o secador de roupa ?
Chega ?
:)
Não encontrando os engravatados do costume a discutir a sustentabilidade, sinto-me tentado a meter a colher.
O sucesso dos modelos sociais reside no equilíbrio politico. Os Impérios, como explicou o Alf, crescem enquanto o modelo vigente permite o afluxo de riqueza ao estado central, sem comprometer o equilíbrio político.
Caiem por razões ecológicas, conforme já expliquei, quando esgotam os recursos e o afluxo de riqueza diminui. Começam então as políticas de rapar o tacho, de uma excessiva subida dos impostos. O sistema político perde a sua sustentabilidade por exaustão dos recursos.
O actual sistema bancário já só pode crescer em lucro taxando e sobre taxando os seus clientes, a começar pelos mais pobres.
Já não é possível crescer porque devoraram toda a comida e o ecossistema entrou em rotura.
Chega ! Em cheio ( para não variar... tem a certeza de que não é o meu vizinho da frente ? )!
Quanto à "Senhora" fico sensibilizada com o cavalheirismo, mas preferia que me tratasse apenas por Matilde.
Ocorre-me ainda uma questão complementar: e os que se empregam nas indústrias e nos comércios desses supérfluos, que fazer deles depois de esgotado o objecto do seu labor ?
Obrigada.
António, excelente a sua nota. Onde você escreve "recursos" eu escrevo "energia", porque ela é a sintese dos recursos essenciais, ou o recurso por excelência, se quiser, pois sem a dose de calorias diárias não há muito mais para discutir.
Matilde, o seu vizinho da frente?!
bem...só se a Matilde fosse a Tia Júlia disfarçada. Mas não estou a vé-la num teclado...:))
Quanto aos eventuais excedentes a questão é muito pertinente.
Parece que em certos circulos já houve quem percebesse que a automação pode ajudar as performances contabilisticas e facilitar a gestão, mas não traz felicidade. Afinal parece que não gostamos de estar permanentemente desocupados, e as politicas incorporação de mão de obra é provável que tendam para equilibrios mais razoáveis.
Fica prometido que num destes dias, com tempo, lá iremos.
Esta sociedade gosta é do complexo, não se sente atraida por coisas simples, principalmente por achar que o complexo é que lhe poupa trabalho e lhe dá mais prazer.
Experimente o Manuel remover todos os excedentes que mencionou e ia ver a revolução que causaria.
Segui a dica de um comentário de um post anterior e encontrei na net o relatório da energia da Eurostat. É uma leitura assustadora!Percebo agora melhor o que lhe li em posts mais antigos quando dizia algo como que as energias alternativas nunca teriam capacidade para realmente virem a sé-lo...
Tiago r cardoso disse: "Esta sociedade gosta é do complexo, não se sente atraida por coisas simples, principalmente por achar que o complexo é que lhe poupa trabalho e lhe dá mais prazer"
Creio que o "problema" reside principalmente no prazer, ou melhor, no CONFORTO.
Se houver recursos para tal, todos queremos um carro de 3000 de cilindrada, um computador de 2000euros com arranque em 5 seg., para escrever cartas, ou ainda não ter que voltar a colocar a garrafa de litro de leite achocolatado no frigorfico e usar um copo que depois terá de ser lavado, etc.
Além do conforto temos também o status. Poderíamos ter uma sociedade em que o bem visto seria usar "linha branca" mas reverter um modelo de cultura de consumo é muito difícil.
Finalmente temos a racionalidade económica das empresas produtoras: necessário ou induzido, se houver mercado para um dado produto provavelmente haverá alguém a produzir.
E muitos dos supérfluos, no caso de embalagens para carne p.e., não o são. A alternativa é irracionalmente económica, ou seja sai mais barato uma linha de empacotamento do que o atendimento personalizado de cada cliente.
Esta sociedade gera efectivamente uma quantidadede resíduos impressionante, mas será racional proceder à reciclagem (para um outro post)?
Questões interessantes são colocadas pelo autor e pelos vários comentadores.
Penso que pouco mais haverá a aduzir ao que aqui foi expendido.
Certamente que muito dependeria de uma mudança de atitude por parte de cada um de nós em relação a certos comportamentos.
Está agora aí a onda das ditas lâmpadas economizadoras; é de aproveitar desde que nãos e esteja a adquirir gato por lebre.
Temos aí agora os ditos veículos híbridos.
Já o disse noutro sítio e fui alvo de chacota, mas pouco me importa. Quem tiver autoclismos dos antigos, pode sempre lá meter dentro uma garrafa com água (ou outro objecto que ocupe espaço e não ande para ali a flutuar). O espaço assim ocupado já não o será por água.
Olhem, e assim sucessivamente. Haja vontade. E querer.
Nem mais, Quint ! :)
Fica prometido novo post sobre a reciclagem, Osvaldo.
Hoje sai coisa ligeira ( ou talvez não... ) para "desanuviar" :))
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