Nota prévia: Quando há anos começaram a ser publicados estudos sobre as alterações climáticas e o aquecimento global, publiquei no semanário regional Barlavento uma crónica que, por não ter perdido actualidade, transponho na integra.
Nunca soube ao certo como é que ele se chamava. Mas fosse onde fosse todos o conheciam. Pela alcunha, claro. Chamavam-lhe “O Sopas”. Ninguém sabia porquê (nem o próprio) nem isso era relevante.
Havia dois aspectos responsáveis pela grande notoriedade do Sopas: a sua proverbial boa disposição e a proeza de nunca ter caído com a motorizada dentro do canal de rega.
Chegados a este ponto, há explicações que têm que ser dadas.
Desde logo que no sistema vascular do Sopas circulava álcool, mais propriamente aguardente de medronho. Esclareça-se, também, que o Sopas era cantoneiro do perímetro de rega, responsável pela abertura e fecho dos pedidos de água dos agricultores do planalto. No cumprimento dessas funções, o Sopas deslocava-se a alta velocidade sobre as veredas das bermas dos canais de rega (essas mesmas em que é proibido circular de velocípede com ou sem motor, e a pé só com cuidado) montando numa “Casal de 5ª”. O Sopas nunca se atrasou na abertura de qualquer adufa, nem nunca caiu ao canal. Essas são certezas na memória popular.
Para arredondar o fim do mês, o Sopas tinha um biscate e uma avença. O biscate era a pesca ao sargo, tarefa de fim-de-semana cujo produto revertia para os restaurantes das redondezas ou para épicas caldeiradas, se houvesse quem entrasse com o vinho, o pão e as batatas (por esta ordem). A avença, que tinha sido arranjada por intermédio do engenheiro, era o posto meteorológico: competia ao Sopas a manutenção, a recolha diária dos dados e o seu envio mensal para o Instituto na Capital. O envio mensal dos mapas de dados nunca falhou. A recolha diária desses dados, bem, isso era outro assunto.
É que o posto ficava fora da volta e longe de casa. De Inverno, desde que não estivesse a chover e a nortada não fosse rija, até não tinha dúvida, sempre sobrava algum tempo dos serviços de manutenção das infra estruturas. Mas no Verão, com a azáfama da distribuição da água a ocupar as manhãs e as tardes, o que sobrava era a hora do calor, mais que imprópria para tais desempenhos. As avarias do material também não eram fáceis de resolver. Lembrem-se que ao tempo ainda não havia telemóveis, e por um capricho dos TLP, telefonar da taberna do Pacheco para a vila era uma interurbana.
Um dia, ia eu a despacho na Vila, quando à saída do Monte me cruzei com o Sopas. Por descargo de consciência perguntei se precisava de alguma coisa, ao que ele respondeu que, fazendo eu esse favor, pedisse ao Engenheiro que informasse o Instituto que o termómetro de máximas e mínimas estava avariado. O que o Sopas queria mesmo dizer é que o dito se tinha partido ia para quinze dias. O novo demorou uma semana a chegar, mas, claro está, não foi pela falta de termómetro que o mapa mensal de máximas e mínimas daquele Julho deixou de seguir para Lisboa com casas decimais e tudo.
Conheci um colega de avença do Sopas , o Cebola ( de apelido, não de alcunha). Era um cabo-de-mar natural de Serpa e durante anos e anos foi o guardião dos bons costumes da mais conceituada praia algarvia contra os desmandos das bifas que, trajando à margem do regulamento, começavam a aparecer a banhos por estas latitudes, e a quem ele repreendia com ar sério e mímicas irreproduzíveis, num inglês de praia que transcrevo em estilo livre (à falta de léxico adequado):“Madame, Madame: Ai beach boss look sérvice. Biquinu, não like; fato-de-banho, very like ! "
Cebola tinha para com os dados da estação meteorológica que tinha avençada uma relação em tudo idêntica à do Sopas: extremo rigor e pontualidade no preenchimento e envio dos mapas de dados; muita intuição, em larga experiência fundada, para inferi-los. Exemplo: se hoje esteve mais calor que ontem, e ontem tinha estado mais fresco que o dia anterior, sendo que anteontem, por acaso, o Cebola até tivera vagar para ir ao posto e o termómetro marcava 25,1 ºC ( mais ou menos, claro), tal queria dizer que a temperatura máxima de hoje apontava para os 25,6ºC e ontem fora de 23,7 ºC.
Nas semanas chuvosas de Novembro, o pluviómetro podia passar dias a transbordar que nunca haveria a pluviosidade de atingir os 94 mm em 24 horas (a capacidade do dito era 1 litro). Porquê? Precaução elementar: não dar nas vistas. É que, além da “regularidade” das visitas, nunca ficou determinado com rigor qual a influencia da carga etílica nos erros de paralaxe na leitura das delicadas escalas. Portanto, nada de números redondos.
Lembro-me do Sopas e do Cebola sempre que me cruzo com estudos climáticos realizados com pretensões de inquestionável rigor científico. No caso do Algarve, por exemplo, é impossível fazer qualquer estudo do clima dos últimos 35 anos sem levar em consideração os contributos do Sopas e do Cebola. E se o “rigor” desses dados é irrelevante para a caracterização do clima, o mesmo já não se poderá dizer quando deles se pretende tirar ilações quanto a tendências da sua dinâmica. A minha perplexidade é maior quando esses dados são utilizados (e até 1994 não podem deixar de o ser) para fundamentar uma tese de aumento em 0,7 ºC da temperatura média do ar nos últimos 30 anos! Aquecimento global? Será. Mas, para variações tão pequenas, qual foi a ponderação que o "factor Sopas" mereceu na construção do algoritmo que suporta essa conclusão?
Quando interlocutores ilustres partilhavam com ele reflexões que mereciam ao Sopas a maior incompreensão ou a mais absoluta das reservas, havia um comentário tipo com o qual ele rematava a conversa com grande solenidade: " Pois não tenha vossemecê dúvida nenhuma!"
É isso mesmo!
Nota final: como é usual dizer-se nestas circunstâncias, sendo este texto é uma obra de ficção, qualquer semelhança entre as personagens aqui descritas e a realidade será mera coincidência.
2 comentários:
Vim aqui só para lhe agradecer o "piropo" e o conselho "Asterix".
O Desidério não me tira o sono, a possibilidade de existirem muitos Desidérios, essa sim.
Boa noite :,)
Bom texto, só lhe perdoo por isso mesmo, por se um bom texto.
Mas vamos por partes, primeiro ninguém escreve assim. (As pessoas escrevem como eu, ou pior, por isso existe um certo pretensiosismo por parte do autor.)
Depois, espanta-me a falta de referências culturais e científicas do seu tempo. Como pode alguém colocar um termómetro de mínimas e altas nas mãos de um Sopas, ou um pluviómetro nas de um Cebola?
Será o autor desprovido de qualquer responsabilidade cívica e moral, ao insinuar que não estamos perante um choque climático? Ignorará que tal está cientificamente provado por Al Gore? Sim, o do prémio Nobel.
Existe no entanto outra explicação bem mais grave; não pretendo fazer processos de intenção; mas vejo-me forçado a admitir que o autor pense pela sua própria cabeça! Pronto já o disse.
Por muito menos se acenderam as fogueiras em Portugal. É só um aviso.
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