sexta-feira, 2 de novembro de 2007

"Bombas Inteligentes"

Se tivesse vivido os telejornais nacionais das vinte do verão passado, Kafka decerto consideraria de amador o enredo do seu tão celebrado “Processo” .

O despudor e o entusiasmo com que, sob a batuta dos pivots, as mais variadas figuras da nossa praça se entregaram à arte da adivinhação e da conjectura para elaborar complicadíssimos cenários a propósito do desaparecimento de uma menina inglesa no Algarve, mereceria ficar registado como case-study se o fenómeno não fosse recorrente.

Esta capacidade dos média de efabular e com fábulas preencher tempo de antena e resmas de papel, facilmente deriva o direito e o dever de informar, em condicionamento objectivo da opinião pública. Ao fazê-lo, acaba também por condicionar o trabalho das polícias. Mas, o que é bem pior, condiciona também a própria justiça.

Todos os Deuses do Universo livrem o comum dos mortais de ser atropelado por este género de “ conjugação persecutória” ao melhor estilo das caças às bruxas de outros tempos. Veja-se os casos da mãe e do tio da infelizmente célebre Joana, que estão “à sombra” por conta de uma condenação por homicídio …sem corpo de delito!

Quando a investigação e a justiça se fazem na praça pública por exclusiva conveniência dos superiores interesses comerciais dos média, dando boleia a sedes de protagonismo de incontáveis candidatos a “ justiceiros”, há pessoas concretas cujas vidas são desfeitas com a mais completa à-vontade. Recorde-se o caso do Dr. Paulo Pedroso. Ou então tente-se imaginar que futuro estará reservado ao Sr. Carlos Cruz, se o Tribunal o der por inocente no julgamento do processo Casa Pia.

Sobre determinadas práticas de investigação e da justiça, desde a obtenção de confissões à chapada, à prática de prender para depois investigar, passando pela necessidade medular de transformar em show-off a mais prosaica apreensão de tremoços, já estava esclarecido.

Mas era aqui que contava com os média, para desmontar estas derivas e auxiliar à instauração de uma mentalidade de primado do direito. No entanto, o que sucede é que sou confrontado com situações que me obrigam a questionar-me sobre o conceito de ética subjacente à actividade dos profissionais da comunicação social. Fiquei mais esclarecido quando aqui há tempos li uma entrevista dada a um periódico por uma celebridade do pequeno ecrã, em que declarava sem papas na lingua que, " neste mundo ( da televisão…) quem tem ética não come”. Esclarecedor!

Quanto à tão proclamada independência dos jornalistas, conviremos que mesmo que ela consiga iludir a necessidade do cheque do fim do mês, não é capaz de lidar com outros cheques. Veja-se o que sucedeu com o Arquitecto Saraiva quando resolveu meter-se com o Dr. Ricardo Salgado: xeque – mate!

Portanto, o que se pede essencialmente a um “bom jornalista da actualidade”, é que seja um bom ficcionista, que trate as questões da ética como couves, e venda o melhor possível os superiores interesses das eufemísticas mais-valias dos que o empregam, ainda que para tanto tenha que revisitar Kafka. Quais “bombas inteligentes”, o que possa suceder em consequência da sua actividade, é remetido para a categoria de “danos colaterais”.

O caso é que, por outras vias, os fascismos faziam o mesmo !

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