quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Poder dos Mídia


A insónia instalou-se quando a exótica passageira do lado trocou a almofadinha da British Airways pelo meu ombro. Agora ajeita-se. No processo requisita-me também o braço direito e inunda-me de cheiros a ervas frescas. Conformo-me. Com o braço que sobra, envio um aceno de socorro à solicita assistente de bordo. Ela consegue-me some portuguese newspapers disponibilizados com um acent tão irish quanto o sorriso. São da semana passada mas que se lixe. Qualquer coisa é bem vinda para me distrair a noite do consistente ronronar morninho da sedosa desconhecida que já me dorme literalmente ao colo.

Há meses que não sei noticias da terra. Mas pelo que a mão esquerda vai folheando, pouca coisa mudou nesta ausência. Entre polvos de faces por descobrir e revisões constitucionais por acontecer, o essencial permanece. E o essencial são as incontornáveis prosas dos opinantes articulistas regimentais. Quais pilares do edifício luso, eles dão provas de resistência a qualquer alteração climática. São homens e mulheres que nunca têm dúvidas e que nunca se enganam, autênticos gauleses desta pós-modernidade, irredutíveis na forma como se batem contra qualquer arroto que a ética possa libertar.

Com uma criatividade mais assertiva que poção mágica, fazem noticia sobre o que não aconteceu… mas podia ter acontecido. Isto não é jornalismo, senhores, é arte ! E eu dou graças a tais artistas. Bem hajam! São eles quem me ajuda a fazer de conta que ignoro as deambulações das mãos da minha vizinha, que há dez minutos me percorrem sonolentas sem se aperceberem por onde andam, as malvadas. Exímio na arte de instrução, julgamento e condenação em processo sumaríssimo do mais pintado, o jornalista luso nada perdoa. O Sócrates é mentiroso, o Cruz pedófilo , o Lima assassino.
- Se foi o ultimo a vé-la com vida…
- Ah sim ? Por isso ?! Quer dizer que têm a certeza que foi o ultimo ?
- Bem, a autopsia não foi conclusiva…. Mas no Brasil encomendar um serviço é barato, portanto ?…
- Portanto ?! E por que não eu o mandante, pá ? Sabias que o meu sonho era engatar uma velha herdeira para o golpe do baú e depois despachá-la?

O formato tablóide que contaminou a comunicação, é como uma inundação de falta de carácter, que alastra com uma virulência superior a todas as gripes conhecidas e por inventar. Nenhum agente se revela tão bom vector da mediocridade como o mau jornalismo. Foi ele que consagrou o principio de que todos somos culpados de qualquer coisa até prova em contrário. E insinuar essa culpa primordial é o fim que justifica todos os meios. Indigno-me, agito-me, incomodo a minha vizinha e ela muda de posição. Sorte madrasta ! Chega-se ainda mais e no processo abre-se-lhe outro botão do camiseiro. Esta é daquelas para quem as copas da Triumph são um acessório inútil, e eu já não sei onde me meter. Pena não ter por aqui o contacto de um destes jornalistas que sabem tudo e têm solução para tudo. Mas por que raios não se acaba com políticos, economistas, magistrados ou juízes, se temos jornalistas mais sábios e capazes que qualquer deles ?? Tento concentrar-me nesta tese mas não há condições. Salva-me a voz do comandante a avisar a malta da iminência da descida para Roma. A vizinha acorda, lânguida, demorada nos sorrisos:
- Did I behave ?
- Believe me : you don’t want to know !

Ela olha-me, ainda demorada. Não sei se pondera a resposta se simplesmente a procura nos refundos do saco onde lhe desapareceu o braço, sem que o olhar se desvie . No espacinho entre a dúvida minha e a resposta dela, quem se desviou foram os meus olhos, teve de ser, pois reparo num identity press card que veio à tona, e onde aquele mesmo sorriso exótico pontuava lado a lado com uma sigla da BBC.
- But I do want to know.
E que lhe hei-de eu responder se ela é das que quer saber tudo, se me sorri com tudo, se até já sabe que perdemos o voo de ligação e que temos vinte longas horas para resolver pelo cafés di Roma ? Vinte ! Eram vinte e podiam ter sido longas, pois podiam, mas acabam por se passar tão depressa que falhamos completamente o voo seguinte, quer dizer, nem tentamos lá chegar, pois já era week-end, Roma estava caldissima, e ela achou que a Toscânia devia estar mais fresca, e agora fala-me de latadas verdes e de rosés de torpor, fala-me disso com sorrisos corados de frescura enquanto eu desatino com a falta da segunda na caixa marada deste restyling do Fiat Cinquecento da Destinia Car-Rental. Subimos para Orino, eu praguejo, ela ri, e quando se ri agita-se-lhe o decote onde as copas seriam ofensas, sobe-lhe a saia sobre as coxas para onde não posso olhar, atento às curvas, à segunda, ao ponteiro da temperatura a subir para o vermelho, espantado com a ideia absurda de ainda haver quem duvide do poder dos mídia.

9 comentários:

alf disse...

Fabuloso!

O jornalismo há muito que deixou de ser a ciência de informar e passou a ser a arte gerir as emoções. Há dois tipos: os criadores de novela, que buscam na realidade a inspiração para os melodramas que desenvolvem, e os mentores de crenças, que os devotos lêem como os crentes rezam.

Você teve muita sorte... saíu-lhe do primeiro tipo rsrsr... e este é um belíssimo post, recorda-me os filmes da época aurea do cinema italiano.

Foi um sonho?

antonio ganhão disse...

E eu a tentar perceber um pouco mais sobre o processo de revisão constitucional e o Manuel volta-me à bimba que perde a almofadinha da British!

Assim não dá!

UFO disse...

adorei,
o post está excelente,
e faz-nos pensar... e invejar.
é bom tê-lo de volta às lides da escrita e do pensamento.

Anónimo disse...

Acredite que haverão muitas bimbas por aí, tantas quantas as bimbys que fazem tudo o que lhes mandam a sorrir e que perdem almofadinhas e muitas outras coisas. Não se irrite com o estilo ping-pong,é uma estratégia de markting como o é os óculos escuros da imagem de marca de um excelente músico.E também não pense muito nas entrelinhas e principalmente não inveje o que não conhece. Nunca sabemos como acaba a viagem.

Matilde Costa disse...

Só por ter retomado a partilha dos seus escritos eu desculpo qualquer coisa ao Manuel, mesmo não gostar do Abrunhosa.

Não nos abandone , homem ! :)

Matilde

Matilde Costa disse...

Só por ter retomado a partilha dos seus escritos eu desculpo qualquer coisa ao Manuel, mesmo não gostar do Abrunhosa.

Não nos abandone , homem ! :)

Matilde

Manuel Rocha disse...

Confesso-me espantado por ainda haver quem visite este espaço, que tenho deixado votado ao mais completo abandono! Só tenho que lhes agradecer, resistentes, as leituras e os comentários.
Alf, não foi um sonho, é uma ficção. O sonho é uma antecâmara da vida. A ficção é apenas aquele lugar estranho onde a realidade se mistura com o sonho. Um lugar tão atraente que há quem tenha dificuldade em distingui-lo da vida. Quem sabe se não será o caso da misteriosa anónima que acha que o Abrunhosa sabe cantar ? Quem sabe se não seria com ela que ficcionei essa travessia das terras altas da Toscânia, onde nunca se atreveu a acompanhar-me, prisioneira das suas próprias ficções ? Ela até pode não ser uma bimba, António, mas pode ter uma bimby. E podíamos seguir por aí dando asas a mais uma surpreendente ficção do Implume, ao som de um fado da Ana Moura, por que não ? 
A Ana Moura sabe cantar. Pode até não perceber de música, não sei, mas sabe cantar. O Abrunhosa é um bom músico, sabe dizer bem, terá imagem, mas não sabe cantar. Disfarçado, não passava das primeiras audições do “achas que sabes cantar”. A anónima, não sabemos se sabe cantar. Pode não saber, e por isso tem dificuldade em separar o que pertence à voz, do resto, da mesma forma que tem dificuldade em separar a vida dos projectos de vida. Mas pode ser que saiba dançar. Se soubesse, em que cenário a veríamos dançando, Alf ? Numa noite nebulosa na praça central de Sienna, em que a lua cheia e difusa surgiu tão de repente que parecia um UFO? Há mulheres que nos acontecem assim, que passam por nós como se fossem ovni’s. E que coreografava ela UFO? “Rumo ao Sul” da Ana Moura ? Conhece, Matilde ? Acha que a anónima preferia que eu não soubesse ler penumbras e entrelinhas, da mesma forma que ela também não sabe como acaba a viagem ? Alguém sabe ? Desses que sabem não tenho inveja, apenas pena, são “casos arrumados”! 

Abraço a todos ! :)

Anónimo disse...

Corro o risco consciente de parecer bajuladora, mas tenho de lhe dizer que a facilidade com que vc muda de registo é algo que me assombra. Depois, lé-lo nunca me deixa indiferente e isso deve querer dizer qualquer coisa.

Florbela

fa_or disse...

Tendo em conta o que (também) o título sugere só posso deduzir que nos mídia não se pode confiar
... ainda para mais de massas, quero dizer, de peso. ou medidas. lol