sábado, 22 de novembro de 2008

Reformas ou Revoluções (II)


Ao que parece, o governo em funções desejou ser visto pela opinião pública como tendo colocado o combate aos grupos de interesse corporativos no topo das suas prioridades. É uma estratégia que aparenta algumas vantagens. Em primeiro lugar, ela tem servido para enviar ao eleitorado a mensagem de que os "sacrifícios" que lhe vão sendo impostos afectam também os "privilegiados", favorecendo assim a aceitação geral de uma política económica que, noutras condições, já teria trazido maiores perdas de popularidade. Em segundo lugar, ela transfere os conflitos com estes grupos do interior dos gabinetes onde eram normalmente resolvidos em privado, para um terreno muito mais favorável ao governo, a praça pública. Como se tem visto, quando expostos à luz dos holofotes, os representantes destes grupos revelam como é escasso o seu repertório de acção colectiva (que raramente tiveram de usar no passado) e como são ineptos no cumprimento de uma tarefa que os políticos desempenham com frequência e habilidade (mas que eles nunca tinham precisado de aprender): a de apresentar a defesa de interesses particulares como sendo também a defesa de interesses públicos. O resultado final é previsível. Em geral, a opinião pública só é favoravelmente influenciada pelas posições tomadas por organizações cujas causas são potencialmente partilháveis por todos, tais como, por exemplo, as dos direitos humanos, o ambiente ou a segurança rodoviária; quando essas causas são construídas como "egoístas", o efeito que geram na opinião pública é, na maioria dos casos, de repulsa.
Sucede que esta estratégia não está isenta de riscos a mais longo prazo. Quando Margaret Thatcher chegou ao poder no Reino Unido, também ela sonhava com a possibilidade de estabelecer uma relação directa entre o poder político e o eleitorado, curto-circuitando o papel dos grupos de interesses na formulação das políticas públicas. Beneficiando de um grau de centralização da autoridade política inédito fora de períodos de guerra e com um partido aparentemente domesticado, Thatcher encarregou-se não apenas de destruir o poder dos sindicatos (coisa que Blair lhe agradece eternamente) mas também de enfrentar aquilo que ela - tal como a maioria dos britânicos - encarava como uma união perversa entre a burocracia estatal e os interesses particulares de professores, médicos, enfermeiros e outros.
O que se seguiu, contudo, foi a degradação geral da qualidade dos serviços públicos no Reino Unido, que terá jogado um papel não desprezível no declínio e fim do thatcherismo. Nuns casos, isso sucedeu porque a saída encontrada para os conflitos com os interesses instalados - a privatização - só serviu para substituir esses interesses por outros e, pelo caminho, para conduzir a desempenhos ainda piores. Noutros casos, porque só tarde demais se terá percebido de onde realmente provém o poder destes grupos profissionais e corporativos: do conhecimento especializado de que dispõem e do grau de autonomia inerente às funções que exercem. Independentemente das razões que tenham ou da falta delas, é isso que lhes permite neutralizar no terreno muitos dos efeitos desejados de quaisquer reformas decididas por qualquer governo, e é isto que exige que a sua colaboração seja, em última análise, necessária para o sucesso das reformas.
Há pois uma linha que separa a indispensável demonstração de autoridade política por parte de um governo democrático da bravata improdutiva e demagógica. É uma linha muito estreita, que , para benefício geral, talvez devesse ser atravessada com menor frequência. Mas isso não legitima nem basta para explicar as razões que levam os interesses neo-corporativos instalados a reagir como inocentes virgens ofendidas quando são afrontados os seus interesses de classe. E ainda não foi desta que consegui dar por concluída esta saga.


4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Manuel

A saga só pode ser concluída quando denunciar a corrupção dos ditos grupos profissionais carentes de competêncis: basta pensar nos professores que, se fossem avaliados através de um exame público, chumbavam. É isso ue eles temem: ser avaliados.

Bom cunjunto de posts! :)

Manuel Rocha disse...

Olá Francisco !

Pensava que estava de férias ...;)

Quanto ao fim da "saga", lá iremos.

alf disse...

tentar chegar ao âmago das questões é uma tarefa interminável... mas o Manuel vai muito bem; ainda não li nada em lado nenhum que se compare a estes seus dois posts.

Há um problema nestas coisas que é a destruição da ética. Quando se pretende controlar minuciosamente os resultados e se esquece de cuidar do respeito e do estímulo dos colaboradores, de estabelecer uma relação de interdendência, as pessoas passam a considerar que a defesa intransigente dos seus interesses pessoais fica legitimada pelo facto da outra parte os ignorar completamente.

Gerir grandes grupos é uma tarefa quase impossível (só mesmo recorrendo a técnicas militares...) por isso é que muitas vezes a solução está em dividir em pequenos grupos com alguma autonomia. Creio se tentou fazer isso em alguns aspectos, mas de forma incompleta. Eu penso que começar por um bom sistema de avaliação de escolas era mais importante porque depois os professores de cada escola ficariam comprometidos com os resultados da escola. Isso teria muito melhores consequencias para a qualidade do ensino do que olhar para os professores individualmente (isso passaria a ser problema de cada escola)

Peter disse...

Continue com a "saga" porque continua bem e leio-o com interesse.
Permito-me destacar:
"Ao que parece, o governo em funções desejou ser visto pela opinião pública como tendo colocado o combate aos grupos de interesse corporativos no topo das suas prioridades."
Ao que parece Sócrates pretende ser um "aprendiz de feiticeiro".
Estou a lembrar-me daquele filme de Disney, "Fantasia"...
Mickey já era incapaz de parar a água.

"Quando Margaret Thatcher chegou ao poder no Reino Unido, também ela sonhava com a possibilidade de estabelecer uma relação directa entre o poder político e o eleitorado, curto-circuitando o papel dos grupos de interesses na formulação das políticas públicas."

Apreciei bastante.