segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Alternativas Caprichosas



O desenho conceptual das tecnologias associadas à exploração energética das fontes ditas renováveis, encaixa num modelo de cultura e organização social e económica que não tem nada a ver com o funcionamento do actual paradigma civilizacional do ocidente.
Em anteriores oportunidades coloquei a tónica nas questões de escala, ou seja, da dimensão física que lhes seria requerida para corresponderam às enormes produções que lhes seriam exigidas para se afirmarem como alternativa efectiva aos combustíveis fósseis, bem como dos impactos inerentes. Mas elas têm outras limitações. Particularmente uma natureza caprichosa, que tentarei esclarecer e ilustrar dentro das limitadas possibilidades do meu domínio destas matérias.

O caso é que a gestão convencional da produção de energia da modernidade ocidental assenta num esquema simples. De um lado coloca-se um reservatório onde se acumula a fonte (montanha de carvão, barragem cheia ou super-petroleiro) e do outro o mecanismo que a transforma (central térmica, turbina hidráulica, motor de combustão) em electricidade, calor, movimento. Desde que os reservatórios estejam abastecidos, a produção decorre de acordo com as necessidades do utilizador.
Como é que o utilizador estabelece essas necessidades? Segundo pressupostos de disponibilidade permanente. Isto é, a lâmpada deve acender independentemente da hora a que eu resolva accionar o interruptor. Apenas isso? Não! Além dessa disponibilidade permanente, exige-se ainda elevada performance, quer dizer, elevada capacidade de produzir trabalho, o que implica não apenas um fluxo contínuo, mas um fluxo contínuo de elevada potência. Ou seja, o sistema tem que estar preparado para responder à minha decisão aleatória de neste momento ter apenas uma luz acesa ou, ao mesmo tempo, as máquinas de roupa e loiça, a TV e o ar condicionado.

Ora neste aspecto o abastecimento de electricidade não é como o abastecimento de água! Neste, basta controlar o nível do reservatório, pois com a rede em carga eu uso a água (abro e fecho a torneira) à medida das minhas necessidades igualmente aleatórias, mas a água só corre quando eu abro a torneira ( sistema fechado) e só depois disso se enche de novo o depósito. No caso da electricidade não é assim, pois não há “reservatório” cheio de electricidade. De facto, embora o meu contador só se mova quando eu acciono o interruptor, para que eu disponha de corrente no sistema a electricidade tem que estar a ser permanentemente gerada, seja usada ou não, acontecendo que a que não é não volta a qualquer reservatório – perde-se apenas ( sistema aberto )! Voltando à comparação com o subsistema água, seria como se para dispor de água eu tivesse que ter sempre a torneira aberta.

É em relação a este pressuposto de abastecimento ( fluxo continuo de elevada potência ), que é estruturante da produção de energia eléctrica, que as tecnologias mais em voga no uso das renováveis revelam o seu grande handicap: o temperamento caprichoso e aleatório das respectivas fontes. Ou seja, não é possível accioná-las á la carte de acordo com as necessidades do utilizador, pois não se encomenda vento, sol, chuva ou ondulação marítima.

A solução ideal seria armazenar a energia que se pode produzir quando Hélios, Éolo ou Neptuno estão para aí virados. Mas como ainda não foi inventada uma super-bateria capaz disso, os campos de aerogeradores ou de painéis fotovoltaicos arriscam-se a trabalhar inutilmente sobre “vazios” de consumo e a estar parados nos respectivos “picos”. Quer dizer, são sistemas que não dão quaisquer garantias de conseguir gerar fluxos contínuos de energia e por isso não são capazes de assegurar o funcionamento do modelo de consumo instalado.

De facto, o “metabolismo” energético do modelo de ordenamento vigente, centrado nas grandes aglomerações urbanas, não se compadece com o temperamento instável das divindades “alternativas”. Em 2007, por exemplo, o parque eólico da EDP ficou-se pela produção de 24% da potência instalada (cerca de 500 Mw). Desta produção não encontrei dados publicados relativos à sua distribuição sazonal e destino. Mas em Dezembro e Janeiro últimos ( período de pico de consumos devido à procura de energia para aquecimento ) é público que o parque eólico nacional esteve praticamente parado devido à permanência sobre o território de uma extensa crista anti-ciclónica. Estas são razões bastantes para colocar em questão a utilidade ( no sentido da oportunidade da produção ) da “capacidade teórica”das alternativas instaladas.

Para que se tenha uma ideia prática, veja-se que em 2005 o consumo eléctrico só de Lisboa (cerca de 3500 GWh) correspondeu a cerca de 40 % da produção nacional de todas as fontes de energia renovável (próxima de 9000 GWh). Teoricamente poderíamos então dizer que temos energia de fontes renováveis de sobra para abastecer a Capital. Mas teria a variabilidade da distribuição desta produção sido capaz de responder aos consumos constantes da cidade ? Duvido muito !

Por conseguinte as fontes de energia renováveis actualmente em exploração, devido à variabilidade intrínseca à sua natureza, estão vocacionadas para funcionar numa lógica de complementaridade, sim, mas na pequena e média escala em que a produção de um fluxo contínuo de elevada potência não seja imperativo. Nessa medida o seu uso pressupõe uma filosofia de vida e de ordenamento do espaço distintas da actual. Nessas condições, o biogás, a hídrica, a fotovoltaica, a aerogeração, a biomassa ou os biocombustiveis, poderão ser capazes de reduzir custos e entropias, optimizando o seu uso como fontes de energia. Mas numa sociedade alternativa. Não nesta.

16 comentários:

joshua disse...

Manuel, então essa nova sociedade, chamemos-lhe EnergoUtópica, a grande aquisição seria um Sistema Apertadíssimo e Apuradíssimo de Comutação, onde as necessidades dependentes da variabilidade caprichosa das fontes fossem dominadas por uma base alargadíssima de meios ligados/desligados, consoante a abundância de Hélios, Eólo ou Neptuno.

Isto até uma Terceira Via, Fusão/Fissão Nuclear Controlada e Continuada, tão torrencial, inesgotável e armazenável(?) numa escala para lá do que vamos concebendo entre as fontes tradicionais.

Isto é muito interessante.

PALAVROSSAVRVS REX

Manuel Rocha disse...

Joshua,

Gostei da ideia EnergoUtópica ...:))

Quanto ao resto, olha, sei lá, eu até sou dos que não se importa por aí além quando dou ao interruptor e não se acende a luz. Pode ter sido por ter crescido com isso e sem TV e por não ter notado que viesse daí menos qualidade de vida, pelo contrário. Tenho a sensação que boa parte dos nosso problemas advêm de se colocar simplesmente a fasquia demasiado alta. Que achas ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bom texto, como já é habitual! Gostei da comparação da água (sistema fechado) e da electricidade (sistema aberto): um guarda-se, o outro dissipa-se. Muito sugestiva e pedagógica.
Para todos os efeitos, é preciso mudar de modelo de sociedade, até porque a actual sociedade é insustentável a todos os níveis (não só energético). Utopia é querer não ver a necessidade de implementar gradualmente essa mudança. Ou melhor: a catástrofe é essa; a utopia é abrir o futuro e colocar o homem na via da autenticidade! Política da autenticidade tem sido uma proposta da Esquerda Americana. Interpretei-a no sentido de uma nova "política do sentido", bem dirigida ao homem na sua subjectividade e relações com o mundo. :)

Manuel Rocha disse...

Francisco,

Como já reparou a questão do "sentido" já foi por diversas vezes abordada neste espaço. Sei que é uma questão central, mas não consigo ir mais longe que isso...:((

Anónimo disse...

Peço desde já desculpa por comentar anónimo mas perceber-se-á bem porquê já de seguida.
Com o devido respeito, tenho algumas dúvidas de que o Senhor Manuel Rocha tenha ideia do ponto a que são pertinentes as suas observações. Essas dúvidas têm a ver com o meu conhecimento de facto de que os dados que as poderiam tornar ainda mais reveladoras são publicados de tal forma que é quase impossível desagregá-los. Posso garantir-lhe, por exemplo, que no ano findo 72.3 % da eólica gerada na área sob o meu controlo foi literalmente deitada ao mar . Exactamente porque na maioria das vezes entram e param sem pré-aviso ( a variabilidade de que fala ) o que obriga a manter outro tipo de geração ( no caso gás ) para manter a tensão de rede necessária ao consumo previsivel ( há alturas em que o excedente de produção em relação ao consumo efectivo ultrapassa 30 % ). Apesar disso a totalidade da geração eólica é paga ao respectivo parque! Portanto, embora eu entenda que não se possa falar de tudo num artigo, quanto a mim, falar de qualquer renovável sem abordar o negócio que elas actualmente representam é tratar apenas uma terça parte do tema, se tanto.

joshua disse...

Manuel, sim, concordo contigo, mas numa perspectiva de alternância Urbs / Villa. Tivéssemos generalizado poder de aquisição e, nessa alternância, saberíamos prescindir das comodidades urbanas de que devemos reaprender a prescindir intermitentemente por uma plena animalidade-de-contacto-natural, que também nos faz falta.

Mas a Villa está a ser ferozmente abandonada às silvas. É o Paradigma que nos retém. Talvez o Francisco Sousa esteja certíssimo quando a sua para-Angola-e-em-Força é aquela «política do sentido».

antonio ganhão disse...

Hélios, Éolo ou Neptuno? Já tinhamos o Bush. para que é que precisamos destes?

Pois eu proponho que se use o excedente de energia produzida nas renováveis para bombear de volta as àguas das barragens.. (ah! não é novidade?)

Mas o que é importante é que toda a energia potencialmente produzida tem que ser facturada quer a REN lhe dê destino útil ou não...

Manuel Rocha disse...

Caro Anónimo.

Obrigado pelo complemento. É como diz. Os relatórios de produção da EDP são uma leitura " blindada" em que tem que se escavar para encontrar algo interessante.
Por exemplo, nunca neles se explicita que as termoelectricas raramente debitam nos contadores mais que 40 % do potencial de entrada.
O que me diz das eólicas não me surpreende de todo, mas a não divulgação por quem de direito desses dados é uma atitude que condeno, pois contribui para a desinfoirmação pública sobnre a matéria.

Joshua,

É isso...andamos todos bastante á deriva...e repara que a falta da informação referidas no comentário anterior não ajuda em nada a que sejamos capazes de defenir um rumo.

António,

Sim, claro, ...de resto essa prática faz-se nas hidricas quando têm excesso de potência disponivel em tensão, No entanto é bom que se esclareça que é uma pratica que só faz sentido em reservatórios em cascata e que está limitada pelo cumprimento dos caudais ecológicos a juzante. Além disso em anos normais de chuva, nos peridos com as represas cheias e em abastecimento continuado não fazem sentido. Nos restantes, mantem-se o problema da imprevisibilidade dos excessos de potência com origem nas eólicas. Ou seja, é uma boa solução teórica!

Quanto ao pagar...pois claro...senão que seria da cotação da empresa em Bolsa de Valores ??

Anónimo disse...

Caro Manuel Rocha,

Razões de ética profissional impedem-me de comentar em concreto alguns dos números que usa.
Razões de ética pessoal obrigam-me a apoiar incondicionalmente os seus pressupostos e ilacções. Os meus cumprimentos pelo esforço de desmistificação de uma realidade confrangedora. Tanto que assusta. Por isso os poderes instituidos abordam-na em sucessivos saltos para a frente enquanto a cidadania demite-se dessa discussão.


Ao Francisco de Sousa:

Para comentar um pequeno detalhe do seu comentário qe que é o seguinte: a dissipação decorre naturalmente do uso da energia, mas atenção que aquela a que o texto alude não chega a ser usada.

Cumprimentos.

Trigo Pereira

Manuel Rocha disse...

Blue,

Obrigado.

Cuidado com a leitura que fazes da "complementaridade". Repara no comentário anónimo, que faz mais luz do que eu fui capaz sobre a forma como é gerida a energia de fontes renováveis efectivamente gerada.
Com uma barragem cheia tu predeterminas a geração que pretendes e a sua duração e em função disso organizas a distribuição na rede segundo lógicas que se bem geridas minimizam as perdas. Mas a eólica, a fotovoltaica ou a das marés não se enquadra nessa lógica de pre determinismo. Por isso bastas vezes não se sabe o que fazer com ela ! Mas é paga !

No resto a tua conclusão está em linha com a minha. É também pelas razões que invocas que concluo que as renováveis fazem parte do desenho de um outro modelo de sociedade. Nesta estão descontextualizadas.


Trigo Pereira,

Obrigado.

alf disse...

Há uma razão à cabeça para os paises do Norte gastarem muito mais energia per capita que os do Sol: têm um clima muito pior.

Isto significa muito maiores custos energéticos para tudo: aquecimento, transportes, produção de alimentos. O mau clima também aumenta as necessidades das pessoas - lazer mais complexo e caro por exemplo.

(não significa que seja só por isso, estou só a lembrar que os paises do Sul dispõe de uma riqueza climática normalmente ignorada - que até pode ser traduzida em barris de petróleo...)

As soluções não nascem perfeitas, é sempre um processo evolutivo. De erro em erro, de disparate em disparate se vão construindo as soluções. O problema da acumulação em escala da energia não pode ter soluções antes de existir uma grande necessidade disso. Mas já começa a construir-se, a acumulação em reservatórios hídricos está em progresso e tem muito para evoluir.

Claro que estou de acordo com o manuel em que a ordenação do território tem de ser feita de forma mais eficiente. O que eu estou curioso de ver é qual é a solução do manuel.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Tenho testado as pessoas sobre a diferença entre o sistema fechado da água e o sistema aberto da electricidade e ninguém sabe! É uma informação inteligente para alertar as pessoas! :)

Manuel Rocha disse...

Blue,

Nuclear ?! Não, obrigado !

:))

Francisco,

Pois, há pequenos gestos do quotidiano incorporadas com tanta naturalidade que até deixamos de lhes dar a importância que têm...:(


Alf,

Soluções ?! Ehehe ! E acha que se eu as tivesse e as publicasse aqui alguém daria por ela um cêntimo ?! Se fosse em palestra no Museu da Electricidade a troco de 200.000 € e com o patrocinio do Expresso o caso já mudava de figura...:))

Como sabe de experiência feita lá do seu lado há teses cujo valor advêm da etiqueta que lhes está colada. Como certos quadros. Uma tela em branco é pano para obra, mas se tiver a assinatura do Miró muda logo de estatuto para incontornável obra de arte....:))

Brincadeiras à parte, mesmo que não se tenha solução na manga, é bom que se perceba que há diferença entre mistificação, oportunismo e soluções com sentido. É o que tento fazer neste caso das alternativas, que a minha avó resumiria melhor que eu com uma tirada do género de serem contas feitas com o ovo que está no cu da galinha...:))

quintarantino disse...

Não percebo nada disto e não tenho paciência para estas discussões técnicas. Ponto.

Segundo percebo, e volto a insistir, a conclusão que se pode extrair dos escritos do nosso amigo Manuel é que entre os desperdícios e lógicas de gestão completamente distorcidas da sociedade plutocrata actual (onde os Bilderbergs e G7's determinam e riscam a bel prazer) e a pseudo-alternativa dos renováveis, nada nos resta senão o ... caos!

Vem um amigo "anónimo", que respeito e compreendo, e ainda alarga mais a chaga da ferida: tudo não passa de cifrões!

E agora até as incandescentes nos querem obrigar a tirar de casa em nome da eficácia energética, esquecendo-se que atrás das energéticas têm de vir novos candeeiros!

Rita disse...

Oh Manuel, se me permite, acho que anda por aí muita energia humana mal aproveitada, e essa basta querermos para ser renovável, limpa, despoluidora e essas coisas todas....cada um que faça o que lhe compete e o mundo já anda melhorzinho...um abraço!**

Rita disse...

Por acaso ao ler os outros comentários deparei com o do alf onde se mencionava que os países do norte gastam mais energia porque têm pior clima. É verdade que gastam mais energia mas são auto-sustentáveis nesse sentido e a maior parte da energia que usam é menos poluidora que a que nós usamos. Vivi algum tempo na Suécia das maiores surpresas que tive foi quando descobri que as bicicletas têm prioridade sobre todos os outros veículos, porque são o principal meio de transporte, e mesmo com -10 C lá ia tudo para a universidade de bicla, bem como na Noruega e na Finlãndia. E todas as casas têm aquecimento, mas a biodiesel produzido a partir das coníferas que são plantadas pelo próprio governo em cada espacinho livre que haja, mesmo as rotundas no meio das cidades. O aquecimento é canalizado para que todos os edifícios tenham uma sauna comum no sótão. E o Canadá é o maior produtor mundial de colza para biodiesel, também para fazerem mexer a sua indústria, infelizmente não se viraram para as coníferas como a Escandinávia. Não são soluções perfeitas, mas são melhores do que o famigerado ouro negro que nós usamos até para ir ao café da esquina...