quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Bellini, segundo Calado.

Bellini, segundo Calado !

Entrevistando Cecilia Bartoli, Jorge Calado, melómano confesso, admite a certa altura que, quando ouviu pela primeira vez a ária “Casta Diva” da Norma de Bellini, que ela interpreta de acordo com as anotações originais do compositor, não só quase não a reconheceu como…detestou !!
Mais para diante, esclarece-nos que a “audição repetida” o acabou por convencer, isto depois de reconhecer que o trabalho de Bartoli “recria o belcanto” como “ deve ter soado na altura”.
A leitura desta entrevista e dos artigos anexos, remeteu-me para reflexões sobre a apreciação estética da arte em geral. Afinal, gostamos genuinamente das criações artísticas que nos são propostas, sejam elas literárias, musicais, pictóricas, performativas, ou o que quer que sejam, ou…”aprendemos a gostar”? Mais: este “aprender a gostar”é ele próprio o resultado duma evolução da nossa sensibilidade ou…uma “construção” do “eu social” para uso das exigências específicas de uma época ou de um grupo ?
Confesso algumas dificuldades de isenção na abordagem desta temática, uma vez que sempre me irritaram solenemente as “vacas sagradas” em geral, e em particular as que ruminam nos complexos pastos da cultura que se auto-denomina “erudita”.
A necessidade de certos grupos em reconstruir permanentemente elementos de diferenciação que suportem as suas reivindicações elitistas, leva-os, nesse processo, a deitar a mão ao que quer que seja. Não é de estranhar, por isso, que formas de expressão artística que no seu tempo e contexto estariam para as elites ao nível a que hoje elas colocam a dita música pimba, se vejam, de repente, “reinventadas” e promovidas para patamares de excepção a reboque de adjectivações tão opacas quanto ocas, em que se especializam alguns dos guardiões do “bem pensar”.
O fado, à semelhança do jazz, ou como certa ópera, são bons exemplos. Há poucas dezenas de anos, o fado era pejorativamente conotado com uma marginalidade pouco recomendável. Hoje, a elite enfatuada veste-se de gala para aplaudir em pé nos CC’s, a artista que canta em tom sofrido e pose brejeira o drama de uma Severa de má fama; e no dia seguinte, acompanha com o bater do pé o swing que serve de moldura à versão coral da revolta negra contra a exploração que lhe era imposta pelos ilustres avós dos assistentes !
Nada nos garante, portanto, que o “Bacalhau” do Quim Barreiros não venha um dia a ser acompanhado pela orquestra sinfónica da Gulbenkian , com a mesma seriedade com que já acompanha as variantes escatológicas do legado de Mozart !
Se é verdade que se admite não ser razoável apreciar a produção artística apenas com base num crivo de qualidades objectivas, sejam elas técnicas ou estéticas, e que o “gosto”, sendo necessariamente cultural, também muito deve á sensibilidade de cada um, não deixa de ser um facto que, neste tempo de “prêt-à-porter, ”a ordem económica instalada vive de marcas, e a sociedade estrutura-se em função das respectivas etiquetas - é mais simples !
Um rabisco num guardanapo de papel deixa de ser apenas o que é – um rabisco – se tiver sido produzido pelo punho do Picasso ! E Picasso…é Picasso !!
Aqui há uns tempos, cometi a imprudência de comentar com uma amiga, que não sou admirador da obra poética de Pessoa ! Escândalo! Estive à beira do fuzilamento cultural!
- Pessoa ?! Por amor de Deus !!!...Pessoa é dos maiores expoentes da poesia!!!...Mas será que estamos a falar do mesmo Pessoa??!!
Retirei-me da contenda mas não me rendi, e passados alguns meses enviei-lhe a transcrição de alguns poemas tirados ao acaso da obra de Álvaro de Campos.
- Então, que tal ? – Inquiri casualmente alguns dias depois .
- Eh !...… é um estilo que não me diz muito…são de quem ??
Foi deste episódio que me recordei quando li as peças do melómano Jorge Calado. Não é difícil imaginá-lo num diálogo similar com a Bartoli.
- Gostou desta ária ??
- Não ! Para ser franco, detestei! É de quem ??
- É a “Casta Diva”, da Norma, de Bellini, interpretada por mim de acordo com as anotações originais…
- Bellini ?!...sim, claro…que disparate!!...posso ouvir outra vez ??

- Ah, sim, claro !!!..Bellini…que talento !!!..E que interpretação… a forma como sustenta aquele dó agudo duas oitavas abaixo do par do campo … Magistral !!
A sociedade GPS já não é capaz de reconhecer a Estrela Polar num céu de Agosto. Precisa de vozes, guias, intérpretes, setas, legendas. Por isso, durante os concertos, procuram-se avidamente nos textos de apoio oportunamente distribuídos, mais que razões para gostar das peças, que muitas vezes nada dizem às emoções, argumentos de suporte para a inevitável troca de comentários no foyer, durante o intervalo. Os concertos, não se ouvem – lêem-se! Pessoa, não se lê – aprende-se! A Guernika, não se vê – comenta-se! As revistas especializadas simplificam-nos a vida, listando os léxicos, os autores, as referências a que se deve recorrer para projectar uma imagem “up-date” em relação às mais variadas temáticas, pois é assim que nos distinguimos da mediania!
Esta a lição de Calado !

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