terça-feira, 4 de março de 2008

Simplesmente Laranja

A relação que se estabeleceu no post anterior entre activismos de educação ambiental ( EA) e a escola, foi usada para ilustrar a subordinação normalmente inconsciente à lógica verde-capitalista que se tem vindo a instalar na sociedade nos últimos tempos.

Não se interprete porém o que foi dito apenas como uma critica, mais uma, à escola que temos. Claro que é uma critica, mas com uma leitura transversal implícita, isto é, as instituições, todas elas, reflectem a sociedade que somos: uma sociedade de criaturas susceptíveis perante o que quer que questione as suas supostas certezas e entre elas e à cabeça a firme convicção na bondade do liberalismo consumista em que vivemos.

Não admira por isso que, tal como qualquer português informado, também os professores estejam convictos de que os problemas mediatizados derivam de imperfeições funcionais do modelo social em que vivemos e não no sistema ( capitalista ) que o suporta. E isso reflecte-se na dificuldade genuína que têm para identificar a faceta ecológica de todas as pequenas questões do quotidiano, preterindo-as a favor da intervenção em linha com a agenda do ambientalismo mediático. São exemplos típicos o buraco do ozono, o aquecimento global ou a desflorestação da Amazónia. Ou seja, situações que os alunos não podem visualizar e sobre as quais é impossível estabelecer no concreto uma relação de causa-efeito com a sua vida quotidiana.

Para tentar descolar das generalidades que normalmente se debitam em redor destas questões, a EA que se queira efectiva terá de se apoiar em reflexões que antes de mais remetam para o quotidiano: o que comemos, o que vestimos, como nos deslocamos, e acima de tudo isto o que distingue o essencial do acessório.

No entanto, se se pedir a um grupo de professores, em contexto de acção de formação em EA, como exercício prático, a elaboração de um plano de aula em que uma laranja seja usada como eixo para reflectir com carácter interdisciplinar uma noção de condicionalismo geográfico, não será de estranhar que não cheguem mais longe que à vitamina C e ao escorbuto e à importância dos citrinos na sua prevenção!

De facto, a menos que imperativos publicitários o motivem, na perspectiva ambiental o factor origem raramente é tido em conta. De tal modo que o temos por irrelevante.

Claro que logo que confrontados, os professores caem em si: “ Pois é !” O que significa que até temos a informação. Mas como essa informação é de carácter disciplinar e não estamos capacitados para a integrar transversalmente no quotidiano, formatados que fomos por uma tradição académica e social que confunde capacidade critica com dinâmica reivindicativa, não temos conhecimento consolidado das matérias. Por isso a informação de que dispomos tem fraca valia pedagógica independentemente da metodologia que se use. Assim, dentro de um universo mental de ideias dissociadas, sabemos ir de A a Z. Mas como perdemos o norte logo que o GPS se “cala”, preferimos permanecer dentro dos circuitos que já temos rotinados : vitamina C e escorbuto!

É evidente que dependendo do grau de ensino em que se esteja, questões básicas como uma laranja podem conduzir a abordagens mais ou menos profundas, recorrer a suportes e formas de expressão diversas, servir de pretexto para introduzir metodologias de pesquisa e tratamento de informação ( inclusive em línguas estrangeiras ) ou para uma visita à história da região e às suas relações inter-regionais, ao mesmo tempo que permitem incorporar o tipo de interacções e condicionalismos ambientais ( passados e presentes) que lhe estão associados e por essa via introduz a dimensão regional do conceito de sustentabilidade.

De facto, importa a linha de raciocínio: “ Laranja?! De Onde ? De Valência ?! Onde fica isso ( citrinos e climas mediterrânicos )? Como vem cá ter ( transporte ferroviário vs rodoviário )? Quantos quilómetros ( transportes e combustíveis fósseis ) ? Qual a vantagem ( lógicas de formação dos preços )? E se vier da horta da vizinha ( baixo custo energético dos produtos de proximidade geográfica, economias internas )?”

Claro que para construir esta capacidade de reflectir e questionar o mundo em que se vive, coisa central em EA, os professores terão de saber distinguir problemas ambientais de simples questões de civismo e higiene urbana. E além disso precisam de dominar as temáticas ou então de cooperar activamente entre si para potenciar as respectivas valias disciplinares.

6 comentários:

A Comunidade disse...

Crei que o principal a destacar no post será alguma falta dos professores em passar da vida real à informação "pré-formatada" e vice-versa.
É aquela pergunta tipo: para que serve a Matemática/Fisico-Química/Inglês etc na vida comum?

Mas também será que os alunos são inquisidores? Fogem dos lugares comuns?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eis o problema:

"uma tradição académica e social que confunde capacidade critica com dinâmica reivindicativa, não temos conhecimento consolidado das matérias".

Concordo plenamente com a sua perspectiva e secundo o comentário da BlueGift. Há muita "burrice" na Escola! Editei um post onde defino o Princípio de Responsabilidade (segundo Jonas). Podemos repensá-lo numa perspectiva de Esquerda! :)

Manuel Rocha disse...

Blue,

Exactamente! E o curioso é que há uma dificuldade enorme em abordar o ambiente como o "lugar geométrico" destas derivas...

Osvaldo,

Concordo ! Os professores e os alunos somos todos nós, afinal. Trocamos a capacidade de questionar por meia dúzia de receitas de conforto. De tal modo que nos parece que a vida não faz sentido sem as comodidades a que nos habituamos. Questioná-las é questionarmo-nos, e esse é um exercicio de que ninguém gosta...:(


Francisco,

Já li o seu post. Material deveras interessante...:)

Tiago R Cardoso disse...

O Manuel vai-me desculpar a ausência, mas levei cá um susto quando li o titulo e ainda não recuperei, prometo voltar mais logo.

"Laranja", cruz credo...

Blondewithaphd disse...

E ir ao escorbuto já é uma sorte! Perdoe o desabafo que quem acha que a maré da ignorância (nada santa) das massas já vai muito alta.

alf disse...

Mais um belo post. E acho que este aspecto é muito relevante para a própria teoria capitalista.

Contrariamente ao entendimento de uma certa escola de economistas, que domina o panorama nacional há muitos anos, toda a teoria económica se aplica localmente e visa o desenvolvimento local, através do equilibrio entre as necessidades e a produção.

Um exemplo típico e que encontro facilmente nos livros que os americanos usam é o da orquestra: a orquestra não existe para satisfazer o gosto melómalo ou ostentatório de uns quantos, mas para dar resposta à vontade de tocar música de uns cidadãos e a o gosto de ouvir música de outros.

Por isso, as orquestras são feitas sobretudo com base nos musicos locais, com eventual excepção de uma orquestra muito de topo, concebida noutro âmbito. Cá, ao contrário do que se faz nos EUA, por exemplo, consegue-se que a maioria dos nomes dos músicos das orquestras que o erário público suporta acabem em "ov" e coisas parecidas.

É a ignorância desta caracteristica básica do processo económico que leva a que aqui se importe fruta de todo o mundo, em perfeita concorrencia desleal com os produtores nacionais - os excedentes dos outros são escoados para aqui. Não são para outros lados porque os outros não são parvos.


Este problema e esta estupidez de que o manuel fala não afecta a generalidade do mundo, afecto sobretudo portugal. Noutros paisers europeus só vi até agora fruta importada quando não há produção nacional e normalmente é de paises vizinhos. Posso ter visto mal, mas é a ideia que tenho.

Ou seja, o problema de que o Manuel fala tem proporções escandalosas em Portugal, mas não tanto noutros paises.

Se puser um professor doutro pais a falar da laranja, verá que ele vai logo referir o problema da origem...

nós somos um pais de consumidores... vemos a economia apenas pela óptica do consumidor e depois é disparate em cima de disparate... ser consumidor é que é fino, produzir é coisa do povo...