domingo, 23 de novembro de 2008

Reformas ou Revoluções (III)


Já se escreveu muitas vezes que um dos aspectos fundamentais na mudança ocorrida do autoritarismo para a democracia em países como Portugal ou Espanha foi a transição de um "corporativismo autoritário" para aquilo a que se veio a chamar o "neo-corporativismo". No caso Português houve pelo meio o tempo algo atípico do PREC. Mas o clima de prosperidade económica que decorreu da integração de Portugal na CEE criou rapidamente condições objectivas de bem estar social que retiraram ao movimento sindical espaço de manobra nas suas reivindicações tradicionais e conduziu ao seu aburguesamento corporativo. Assim, o modelo geral de relacionamento entre o estado e os interesses sociais permitiu que se fossem emulando alguns aspectos das versões mais consolidadas deste sistema ( corporativo ) existentes no norte da Europa, em particular o estabelecimento de acordos entre governos, sindicatos e organizações patronais em matérias tão carecidas de compromissos estáveis como as políticas salariais, laborais e de segurança social.

Contudo, algo que tem sido frequentemente negligenciado é o facto de este corporativismo centralizado e trilateral coexistir com uma série de outros sub-sistemas de relações entre o poder político e os interesses organizados. Em muitos casos, tratam-se de sub-sistemas em que os interesses em causa são os de "insider groups", que dispõem de acesso directo ao poder político e estão até, por vezes, localizados no interior do próprio aparelho de estado. Ao longo das últimas décadas, estes grupos de interesse foram exercendo direitos formais e informais de participação nos processos de tomada de decisões políticas que os afectam, sendo eles quem, de facto, parece ter determinado a direcção de políticas públicas absolutamente centrais como a saúde, a justiça ou a educação.

Esta dinâmica aumentou também o fosso entre a cidadania e os processos de decisão. Uma teia complexa de intermediários que se eternizam nos cargos de representação a ponto de se confundir com eles, e a consequente promiscuidade assim criada entre os principais actores do processo social, conduziu a politica de facto para os bastidores da esfera pública. Ao mesmo tempo, a democracia passou a ser-nos servida em directo e exclusivo pelos média através de um guião de género dramático equivalente à pior literatura de cordel e com uma realização que deve ter nas telenovelas mexicanas a sua fonte de inspiração. Afigura-se-me que o resultado conjugado destas duas derivas é a persistente imaturidade cultural da nossa vida democrática. Imaturidade dos políticos, que reduzem a politica democrática a jogos de poder. Imaturidade das politicas democráticas , que se organizam em redor de consensos que funcionam como meros menores denominadores comuns da conjuntura. Imaturidade democrática da cidadania, que é absentista de todo ou é absentista de facto ( pois esgota a sua participação democrática num acto eleitoral ), que confunde liberdade com recusa da autoridade democrática, que não compreende o sentido da alternância , e que vive na convicção ( progressista-materialista ) de que a prosperidade desejada é uma mera questão de distribuição de riqueza e tem desta a noção consolidada de coisa adquirida.

Ou seja, e em bom português, estamos para a vida democrática como certas infâncias mimadas e mal-educadas estão para a vida adulta responsável. Naturalmente, não esgotei o tema. Mas julgo ter deixado algumas ideias para ponderar em contexto mais amplo o fenómeno da recusa dos professores à avaliação segundo prismas menos simplistas que as eventuais deficiências do modelo. Pelo menos a questiúncula gerada em redor deste permite para já avaliar o estado da nossa democracia. Como se vê, nunca se perde tudo. No caso, percebe-se que sabemos de cor a letra e a música da cartilha dos direitos. E que do capitulo dos deveres retivemos a noção “bastante” de constituírem as obrigações dos outros para satisfazer as nossas necessidades pequeno-burguesas. De tal modo que se chega ao ponto de afirmar publicamente que o exercício da oposição não implica a apresentação de alternativas e a ter dela, oposição, a ideia idiota de uma espécie de guerrilha “legitima” para contrariar o exercício do poder democrático com recurso a uma qualquer berraria fulanizada e de baixo nível. E digo idiota porque nem repara que o insulto aos eleitos, independentemente dos motivos, desmerece antes de mais o eleitor e o regime. A menos, claro, que seja essa mesma a intenção.

sábado, 22 de novembro de 2008

Reformas ou Revoluções (II)


Ao que parece, o governo em funções desejou ser visto pela opinião pública como tendo colocado o combate aos grupos de interesse corporativos no topo das suas prioridades. É uma estratégia que aparenta algumas vantagens. Em primeiro lugar, ela tem servido para enviar ao eleitorado a mensagem de que os "sacrifícios" que lhe vão sendo impostos afectam também os "privilegiados", favorecendo assim a aceitação geral de uma política económica que, noutras condições, já teria trazido maiores perdas de popularidade. Em segundo lugar, ela transfere os conflitos com estes grupos do interior dos gabinetes onde eram normalmente resolvidos em privado, para um terreno muito mais favorável ao governo, a praça pública. Como se tem visto, quando expostos à luz dos holofotes, os representantes destes grupos revelam como é escasso o seu repertório de acção colectiva (que raramente tiveram de usar no passado) e como são ineptos no cumprimento de uma tarefa que os políticos desempenham com frequência e habilidade (mas que eles nunca tinham precisado de aprender): a de apresentar a defesa de interesses particulares como sendo também a defesa de interesses públicos. O resultado final é previsível. Em geral, a opinião pública só é favoravelmente influenciada pelas posições tomadas por organizações cujas causas são potencialmente partilháveis por todos, tais como, por exemplo, as dos direitos humanos, o ambiente ou a segurança rodoviária; quando essas causas são construídas como "egoístas", o efeito que geram na opinião pública é, na maioria dos casos, de repulsa.
Sucede que esta estratégia não está isenta de riscos a mais longo prazo. Quando Margaret Thatcher chegou ao poder no Reino Unido, também ela sonhava com a possibilidade de estabelecer uma relação directa entre o poder político e o eleitorado, curto-circuitando o papel dos grupos de interesses na formulação das políticas públicas. Beneficiando de um grau de centralização da autoridade política inédito fora de períodos de guerra e com um partido aparentemente domesticado, Thatcher encarregou-se não apenas de destruir o poder dos sindicatos (coisa que Blair lhe agradece eternamente) mas também de enfrentar aquilo que ela - tal como a maioria dos britânicos - encarava como uma união perversa entre a burocracia estatal e os interesses particulares de professores, médicos, enfermeiros e outros.
O que se seguiu, contudo, foi a degradação geral da qualidade dos serviços públicos no Reino Unido, que terá jogado um papel não desprezível no declínio e fim do thatcherismo. Nuns casos, isso sucedeu porque a saída encontrada para os conflitos com os interesses instalados - a privatização - só serviu para substituir esses interesses por outros e, pelo caminho, para conduzir a desempenhos ainda piores. Noutros casos, porque só tarde demais se terá percebido de onde realmente provém o poder destes grupos profissionais e corporativos: do conhecimento especializado de que dispõem e do grau de autonomia inerente às funções que exercem. Independentemente das razões que tenham ou da falta delas, é isso que lhes permite neutralizar no terreno muitos dos efeitos desejados de quaisquer reformas decididas por qualquer governo, e é isto que exige que a sua colaboração seja, em última análise, necessária para o sucesso das reformas.
Há pois uma linha que separa a indispensável demonstração de autoridade política por parte de um governo democrático da bravata improdutiva e demagógica. É uma linha muito estreita, que , para benefício geral, talvez devesse ser atravessada com menor frequência. Mas isso não legitima nem basta para explicar as razões que levam os interesses neo-corporativos instalados a reagir como inocentes virgens ofendidas quando são afrontados os seus interesses de classe. E ainda não foi desta que consegui dar por concluída esta saga.


sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Reformas ou Revoluções (I)

Existem acontecimentos que a história regista como revoluções mas que na realidade nunca passaram de simples mudança de protagonistas do processo social e da ideologia que os justifica. E, no pólo oposto, há iniciativas que são propostas e apresentadas como meras reformas mas que correspondem ou implicam autênticas revoluções. Na actualidade nacional é isso que a meu ver se passa com a reforma do sistema de ensino. Vamos a ver se consigo explicar por que o afirmo a partir da polémica em torno da avaliação dos professores.

A panóplia de acepções do conceito de avaliação poderá com alguma segurança ser sintetizada com recurso a duas noções que lhe estão associadas: objectivo e medida. Ou seja, de uma forma geral avaliar é tentar estabelecer uma medida que dê ideia da realização de objectivos estabelecidos em função de um normativo qualquer. Mas, com que interesse ? Duplo: hierarquizar e corrigir. Hierarquizar a realidade em função de um critério valorativo e corrigir os processos de persecução dos objectivos ou os próprios objectivos em si. Portanto, a boa avaliação, não se limita a pretender separar o trigo do joio. Ela pretende também a melhoria do processo que conduz a essa separação. E no limite, pode, inclusive, ajudar a determinar se a separação se justifica.

No quotidiano, avaliar tornou-se tão natural como respirar. É isso que fazemos quando escolhemos entre duas peças de vestuário, entre duas carreiras de autocarro ou entre dois restaurantes. E todos sabemos que para o mesmo objectivo, seja vestir, viajar ou jantar, os critérios de avaliação que usamos mudam no tempo e com as circunstancias, bastando para isso que se altere o nosso padrão de exigência, a nossa disponibilidade financeira ou o humor da companhia . Portanto, avaliar serve um terceiro propósito: compatibilizar. Isto é, procurar o melhor equilíbrio entre o desejável e o possível. E esse principio é igualmente válido na nossa vida privada como no funcionamento das instituições em redor das quais se organiza a nossa vida social.

No entanto, entre as nossas avaliações pessoais e a avaliação institucional, existe uma diferença importante: enquanto na primeira somos nós os avaliadores, na segunda passamos a avaliados. Ou seja, altera-se a perspectiva do critério de utilidade. No primeiro caso somos nós quem questiona a utilidade do que nos rodeia; no segundo é a nossa utilidade que é ponderada.

A utilidade social do individuo é uma daquelas polémicas que estará sempre inesgotada. Por agora contorno-a recorrendo ao chavão de que somos criaturas sociais e portanto a vida em comunidade é algo inerente à nossa existência. Ora a existência de uma sociedade implica sempre algum tipo de contributo para o conjunto, e nas sociedades mais sofisticadas a especialização de tarefas e a troca dos respectivos serviços são mesmo a situação corrente, pelo que se torna inevitável que o desempenho de cada um esteja em permanente escrutínio. Ácontece que desse escrutínio resulta a sobrevivência dos “mais aptos” ( lato senso e com todas as aspas que quiserem ) e o eterno problema da inclusão dos “menos aptos”.

O facto de terem sido reconhecidos ( e bem ) inaceitáveis deficits de equidade dos critérios de estratificação convencionais, desaguou para já na modernidade democrática, cujo contrato social contempla a igualdade entre indivíduos como principio e o progresso como objectivo. Mas uma coisa é a equidade como principio, o direito a tratamento não discriminatório perante a lei, no acesso à educação, à saúde ou ao que quer que seja. Outra, bem distinta, deduzir do direito à equidade que todos temos um potencial equitativo de desempenho em qualquer que seja o contributo social que nos seja solicitado para o tal progresso em democracia a que estamos contratualmente obrigados. Ora não é assim. Nem tudo se educa ou aprende do mesmo modo e há características inatas e outras de personalidade que tornam uns mais capazes que outros para tarefas concretas. Contudo, e por estranho que possa parecer, embora toda a gente conviva pacificamente com esse facto quando se aplica à utilidade do outro, seja ele o ministro ou o pedreiro, em culturas como a nossa são poucos os de nós que estão disponíveis para o aceitar quando se aplica à utilidade da nossa excelsa pessoa. E quando essa atitude está tão bem incorporada que faz parte da nossa própria identidade, qualquer medida que se assemelhe a questioná-la e a alterar práticas igualitaristas, não é uma reforma, mas uma revolução cultural descontextualizada.

Bons amigos que tenho a sorte de contar entre a classe docente, têm-me feito chegar ecos do surpreendente ( até para os próprios ) unanimismo na reacção ás reformas introduzidas no sistema . No entanto, quando solicitados para expor os argumentos em que se apoiam na sua contestação, os que usam são de uma tal fragilidade e incoerência que autorizam a ilação de que as objecções de facto nada têm a ver com um modelo de avaliação concreto, qualquer que ele seja, mas com uma muito mais complexa conflitualidade intrínseca com o exercício da cidadania em contexto democrático-progressista. Naturalmente, terei que regressar ao tema.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Recursos e População


Quando usada em ecologia, a ideia de retroacção pretende caracterizar a capacidade que a vida aparenta de aprender com a sua própria experiência a gerir os condicionalismos que são inerentes à sua dependência dos recursos disponíveis. Não se trata de uma aprendizagem linear, mas antes de sequências de ciclos de sinal contrário alternados por factores de regulação próprios.

Pode-se explicar melhor a retroacção ecológica ligando-a à dinâmica de uma população e ao comportamento dos recursos de que necessita. De uma forma geral podemos dizer que o crescimento de uma população está sempre associado a uma maior disponibilidade de recursos. A introdução no sistema de um novo recurso que permita aumentar essa disponibilidade, e que tanto pode ser um novo território como o domínio de uma nova técnica, é um factor de retroacção positiva porque promove o crescimento da população. A morte de indivíduos decorrente do desajuste que entretanto possa advir do crescimento da população assim desencadeado, e a capacidade de crescimento não proporcional dos recursos, é exemplo de um factor de retroacção negativa.

Historicamente, as sociedades humanas parece terem sido capazes de apreender os princípios deste funcionamento, pois reduziram a contingência que lhe é inerente. Fizeram-no identificando empiricamente uma fonte de energia inesgotável ( solar) e um processo natural para o seu aproveitamento ( fotossíntese ) através de uma técnica ( agricultura ) que permitiu criar reservas. Embora mantendo o principio, fizeram-no sob o signo de uma enorme diversidade de soluções. Não por capricho, suponho, mas em resultado de diferentes percepções da variedade de condicionalismos geográficos com que se depararam em cada território concreto. De tal modo que em bom rigor pode afirmar-se que a diversidade dessas abordagens aos constrangimentos locais foi ela própria a chave do sucesso da colonização humana, uma vez que em cada momento o êxito de uns permitiu compensar o insucesso de outros. Pelo contrário, a ultrapassagem das bandas de tolerância desses condicionalismos parece ter tido papel de relevo no fim de ciclos civilizacionais de prosperidade que tendencialmente parecem ter sido tão mais catastróficos quanto mais se edificaram sobre dinâmicas de especialização em ciclos persistentes de retroacção positiva. Civilizações como as Mesopotâmicas, Egípcias, Maias, ou outras, bem que podiam ser relidas nesta chave.
Mas usemos um exemplo relativamente recente e razoavelmente estudado para ilustrar este ponto: a relação da Irlanda com a batata.

Introduzido em meados do século XVI, o cultivo da batata deu origem a um ciclo de prosperidade na Irlanda. Por unidade de energia incorporada no processo produtivo, o cultivo da batata respondia com colheitas proporcionalmente mais energéticas que as tradicionais e dessa forma gerou excedentes que permitiram suportar um crescimento significativo da população, dinâmica que se manteve sem sobressaltos de maior até meados do século XIX . A batata ( novo recurso ) é neste caso bom exemplo de um factor de retroacção positivo. Mas é também exemplo do efeito nefasto da especialização. A deriva para a monocultura e a sua intensificação conduziram ao esgotamento do fundo de fertilidade, ao consequente aumento da susceptibilidade da batata a doenças e pragas, ao declínio abrupto da produção e à fome de quem delas se alimentava ou dependia face à inexistência de alternativas económicas. A consequente morte ou migração de milhares é exemplo de um factor de retroacção negativa que desencadeou o reequilíbrio da relação entra a população e os recursos.

Hoje dir-se-ia que a ciência e a técnica encontraram soluções para lidar e evitar este tipo de contingência. E aparentemente assim é, porque com fertilizantes de síntese e pesticidas teria sido possível manter a monocultura da batata pelo menos por mais algum tempo. Mas se digo aparentemente é porque existe uma óbvia propensão para confundirmos variáveis de fluxo com variáveis de estado e para esquecer que umas e outras não se comportam do mesmo modo.

De facto embora o stock de batata e a população dum território num momento dado sejam ambas variáveis de estado (ou de nível ), as variáveis de fluxo que as caracterizam não são do mesmo género. Ou seja, a produção de batata e o seu consumo ( duas variáveis de fluxo porque ocorrem ( fluem ) entre dois momentos no tempo ) dependem de fenómenos diferentes. Enquanto a produção ( enchimento do reservatório de stock ) não tem um crescimento constante e directamente proporcional ao investimento em factores que nela possa ser feito ( trabalho, fertilizantes, pesticidas ), o consumo ( esvaziamento do reservatório ) é constante e directamente proporcional à população, cujo crescimento tendencial é do tipo geométrico.

Claro que o tempo ecológico não é repetitivo como o da mecânica: é histórico, e por isso produz simultaneamente continuidade e novidade. Mas o bom governo que pretenda minorar os impactos sobre as comunidade humanas dos ressaltos de auto-regulação que naturalmente integram os ciclos de retroacção que comandam a vida, haveria pelo menos de retirar duas ilacções dos conhecimentos que nos tem cedido a compreensão da ecologia . A primeira é que, ao contrário da especialização, que tem sido muito promovida pela modernidade mas que potencia a dependência, a diversidade constitui por si mesma um capital de reserva porque reduz a amplitude das oscilações entre ciclos de retroacção. Ora, nos dias que correm, a energia está para o Ocidente como a batata esteve para os Irlandeses. A segunda ilacção é que, no limite, o equilíbrio possível das interacções entre população e recursos não se resolve apenas pelo lado dos recursos. No entanto, até hoje, só Mao retirou daí consequências politicas.

domingo, 2 de novembro de 2008

Ecologia Ideológica


A visibilidade adquirida pelo movimento ecológico deve muito ao facto de alguns dos temas centrais da sua agenda terem sido, em determinada altura, adoptados como bandeira por alguma esquerda política preocupada com a renovação do seu discurso tradicional. Esta tendência ficou bem patente com a constituição nos anos setenta do Die Grünen, que acabou mesmo por eleger deputados ao Parlamento Alemão em 83 e mais tarde integrou com o SPD um governo de coligação (1988-2005). Opondo aos sistemas de gestão social centrados no crescimento económico, assimétricos e depredatórios, a ideia dos sistemas ecológicos, como harmoniosos e sustentáveis, os Verdes inovaram na crítica ao capitalismo e às suas dinâmicas. Percebe-se a intenção. Mas a falta de rigor da comparação e o facto de ter dado azo ao uso da ecologia como fonte de metáforas nem sempre ajustadas mas que se instalaram de forma duradoura no main-stream (veja-se o caso da sustentabilidade), poderá ter contribuído para mistificar a essência das questões da ecologia humana e dessa forma ter desvirtuado inadvertidamente o sentido e a boa-fé de alguma acção política que nela se pretendeu inspirar. Ao ponto de o movimento ecológico ter aberto a porta à refundação do capitalismo que pretendeu combater, desta vez em versão de novas oportunidades - verdes, claro.

No entanto, para esta conversa, o que me interessa destacar desse processo, é que a apropriação pelo discurso político da linguagem e do corpo conceptual fundador da ecologia trouxe, de facto, para o campo da acção governativa, noções importantes, como as de interacção, retroacção, sistema, complexidade; trouxe-as, mas não se fez acompanhar de uma nova chave de leitura que alterasse o modelo mental de matriz analítica e linear que usamos para Nos entendermos. Quero com isto dizer que embora tenhamos sido capazes de adoptar a ideia da existência de sistemas complexos, continuamos a evidenciar sérias dificuldades em interpretá-los em funcionamento. Na realidade, continuamos a “desmontá-los” para explicá-los a partir de um duplo pré-conceito : de finalidade e de complexidade.

A noção de finalidade, subjacente à generalidade das leituras que fazemos do mundo, implica um vector temporal, ou seja, uma lógica segundo a qual existe um antes e um depois, no duplo pressuposto de que todos os acontecimentos têm necessariamente um princípio e um fim. Mas a ideia de finalidade leva-nos ainda mais longe que isso, quando nos condiciona a pressupor que o que é simples tenha que anteceder o que é complexo, criando assim uma terrível ratoeira ao pensamento de síntese que, na prática, tem enorme dificuldade em descolar da ideia que se tem da síntese química, como processo do elementar para o composto. Ou seja, não se concebe que a água possa ter “acontecido” sem que antes tivessem surgido o oxigénio e o hidrogénio. Quer isto dizer que conseguimos entender ideias como ciclo, mas temos a maior dificuldade em entender outras como retroacção, pois não possuímos linguagem para explicar esses processos sem os “seccionarmos” para os lermos planificados à luz duma dicotomia de causa e efeito. Por isso, as melhores teorias que conseguimos para Nos explicar, como a da Evolução, tendem a demonstrar o pluricelular como resultado da organização do unicelular, o complexo como sofisticação do elementar, o que é global como somatório do que é local, e tudo isto a partir de um princípio, seja ele Deus ou o Big Bang, e com a perfeição, a felicidade ou o progresso como destino.

A teoria de Lovelock tentou romper esta moldura conceptual. Mas o entendimento da Terra como super-organismo auto-regulável e como entidade não pré-determinada, funda-se sobre noções de contingência e desordem que são inaceitáveis para a maioria dos critérios civilizacionais. Por esse motivo, a hipótese GAIA também não conseguiu resolver o conflito mal percebido que se instalou entre a compreensão da ecologia como conhecimento das dinâmicas de retroacção associadas aos fenómenos de casualidade, contingência, conflitualidade e desordem que são inerentes à manifestação da vida, e o entendimento da especificidade da ecologia humana como tentativa de encontrar, dentro dessa compreensão mais lata, compromissos específicos de previsibilidade e ordem. Claro que em parte esse desfasamento poderá ser explicado pelo uso metafórico ou ideológico desses conceitos, o que poderá ter mistificado a sua compreensão. Mas para além disso, a verdade é que não conseguiu construir pontes sólidas entre a noção de complexidade e a sua governança. E este é, a meu ver, o duplo drama do ambientalismo na maioria das suas variantes. Digo drama porque pretende transpor para a acção política uma imposição que é também uma impossibilidade prática: a de produzir um sistema humano estável tendo por modelo pressupostos dos ecossistemas ecológicos que não são estáveis nesse sentido de homogeneidade, permanência e de não contingência que lhes pretendemos atribuir. E digo duplo drama porque vive na permanente tentação de o fazer à escala global, quando na verdade a ideia de globalidade é uma abstracção.

De facto, a partir do momento em que julgamos ter apreendido o funcionamento da vida no seu conjunto, aumentou também a propensão para identificar problemas globais e consequentemente para pensar em soluções globais segundo critérios igualmente globais. Mas, a meu ver, o recurso à ideia de globalidade construi-se sobre fortíssimas contaminações ideológicas pois ela justifica na perfeição a deriva monolítica da modernidade: um paradigma ( progresso ), uma cultura ( ocidental ), uma língua ( inglês ), um sistema económico ( capitalismo ), um sistema político ( democracia), uma medicina ( fisicalista ), uma ciência ( materialista ), um clima ( inalterável ) e por aí adiante. A lógica é mais uma vez linear: um problema, uma explicação, uma solução. Veja-se o exemplo do mercado mundial do carbono. Sucede, no entanto, que esta deriva unificadora leva aos antípodas da compreensão da Vida como entidade sistémica. A razão é simples: ignora a variabilidade e a diversidade como valores centrais da Vida, e em que as melhores soluções não são necessariamente as mais complexas. Ou, dizendo o mesmo de outro modo: o bom governo depende do bom entendimento de cada globalidade local. É nessa escala que se define ou não a sustentabilidade dos processos concretos que promovemos para atingir o objectivo de sempre de regular a contingência a que estamos naturalmente sujeitos.