quinta-feira, 5 de junho de 2008

Duas Notas


Um dos critérios economicistas que aparentemente tem presidido à concentração de inúmeros serviços públicos, de saúde ou de ensino, tem sido associado ao custo de manutenção de pequenas unidades, nomeadamente escolas e centros de saúde de reduzida afluência . As contas feitas na altura, provavelmente deram como resultado que ficava mais barato adquirir e pagar custos de operação de viaturas , ambulâncias e autocarros, que o funcionamento dos serviços nas localidades de origem. Se se mantiver a subida dos preços de combustíveis, e por inevitável arrastamento de tudo o mais que de combustíveis depende, até que ponto não se irá inverter a lógica que presidiu a este tipo de decisões? E nessa altura, quanto custará a recuperação das infra-estruturas entretanto desactivadas ? E as populações que entretanto tenham desertado por manifesto abandono, irão regressar ? E caso não regressem, reforça-se de novo os meios de combate a fogos, contratando para bombeiros inactivos quem antes era agricultor activo ? Que tipo de racionalidade é esta que decide questões de ordenamento do território, estruturantes, segundo critérios que se apoiam em lógicas conjunturais ?




O conhecido ambientalista Macário Correia, parece ter resolvido enviar a frota da CM de Tavira, a que preside, para abastecimento a Espanha. Porque é mais barato, poupa 200 € por dia, diz. Não vou discutir a questão do ponto de vista da deontologia administrativa de uma entidade que, de repente ( e apenas pelo lado da despesa ) , se demite da pertença à administração pública. Nem tão pouco irei entrar em contabilização dos custos directos de desgaste e manutenção inevitavelmente associados aos quilómetros a mais que o expediente implica na frota (somarão apenas 200 € / dia ?! ). Mas não consigo deixar de fazer reparo ao facto de que as causas “verdes” se vendem mais baratas que as alfaces. Afinal, há ambientalistas que não se importam de trocar as toneladas de CO 2 contra as quais tanto barafustam, por uma mera oportunidade de notoriedade mediática. Nada de novo, na verdade, mas não deixa de merecer reparo.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Castelos de Leite

Havia nas montras de brinquedos da minha infância umas caixas de peças que coloriam os sonhos dos poucos meninos que ao tempo eram visitados pelo Pai Natal. Os outros, a maioria, como não constavam do livro de endereços do Lapão, não alimentavam essas veleidades e tratavam de dar uso à imaginação, reutilizando para a brincadeira desde as latas de conservas vazias às rolhas de cortiça, o que só lhes fazia bem , diga-se de passagem. Mas antes que me distraia pelo aliciante dessas pequenas histórias, deixem-me regressar ao Lego . Lembram-se dele ? Óptimo , isso basta-me!
Pois o Lego é uma metáfora que me parece adequada para reflectir sobre a economia para efeitos da conversa que me proponho, na sequência dos comentários que me deixaram ao post anterior. Isto porque, do ponto de vista da estrutura, podemos pensar na economia como um edifício de Lego. Claro que entre as peças do Lego não há a interacção dinâmica que existe entre os sectores da economia. Por isso, ela não é apenas uma estrutura mas um sistema e é também nessa perspectiva que devem ser compreendidas as suas insuficiências.
Assim, as insuficiências do sistema económico, ou são atribuídas a problemas de funcionamento, i.é, a disfunções nas interacções entre os seus sectores, ou a problemas de estrutura, quer dizer, relacionados com a forma das “peças”e o modo como elas se dispõem no edifício económico.
Para as primeiras, as contra - medidas habituais são chamadas anti-cíclicas , como as alterações nos impostos e no preço do dinheiro. Se estas não resultarem, olha-se para as questões de estrutura. Em casos mais sérios até é possível que a economia considere a possibilidade de alterar a disposição das suas peças , ou até de trocar umas por outras ( agricultura e pescas por turismo, p.e ) . Então desmonta-se o Lego e volta-se a montar tudo com uma nova disposição. Eventualmente a mudança até se revela eficaz por uns tempos. Diz-se que se conseguiram melhorias estruturais que repuseram os mecanismos de auto-regulação do mercado e passa-se directamente à apologia do capitalismo-liberal como “ o único sistema capaz de se alterar a si próprio sem mudar a sua essência”. Até nova crise. Que naturalmente acabará por sobrevir, pela simples razão de que essas intervenções nunca consideram sequer a possibilidade de as insuficiências reveladas pela economia poderem estar ligadas à natureza mesma do "sistema de encaixe das peças” que a compõem. Ora esse sistema de encaixe, que corresponde ao macho/fêmea do Lego, é a oferta/procura no mercado.
Embora genial como ideia, a verdade é que o mercado há muito perdeu a sua pureza virginal. Isto é, ele já não é a feira onde eu vou às sextas trocar o excesso de limões de que não preciso pelo pão que não produzo, ou as carpintarias que sei fazer pelo casaco que não tenho. No mercado, tal como o conhecemos, nem a oferta é inocente nem a procura genuína, desde que foi tomadas de assalto por dois sub-sistemas que o desvirtuam: a indução de necessidades como prática de marketing metódica e organizada, e a negociação do inexistente através da especulação financeira legitimada na actividade bolsista.
Na ordem vigente, mesmo que não levemos qualquer necessidade ao mercado, quando lá chegamos ele coloca à nossa disposição mil maneiras bem convincentes de nos fazer concluir que seremos muito mais felizes se adquirirmos duas embalagens de leite com sabor a morangos pelo preço de uma e se passarmos a escovar os dentes com uma escova a pilhas, heresia que ainda hoje a avó Clara não consegue de todo perdoar à neta. Daí que se regresse a casa com um cabaz de coisas estranhíssimas cuja aquisição responde a uma racionalidade postiça que o marketing alimenta. De facto, quando assumimos que “ não conseguimos imaginar a nossa dieta alimentar sem leite” , por exemplo, o que estamos a fazer é a dar consistência a uma necessidade induzida que, de tão banalizada e subliminar, adquiriu raízes culturais de tal forma sólidas que a simples tentativa de contestação roça a ofensa. No entanto, essa “necessidade” não se esgota no acto de consumo. Ela alimenta uma dinâmica que adquiriu vida e peso próprio na economia real, a cadeia de valor, ou seja, o artifício pelo qual uma matéria prima alimentar como o leite é sucessivamente transformada a reboque de necessidades induzidas de forma a que, quando chega ao consumidor, o seu preço se multiplicou várias vezes sem que, contudo, se tenha multiplicado o seu valor alimentar. É fácil verificar a diferença muito significativa entre o preço do leite em embalagem de litro ou em três embalagens individuais de 33 cc. E fazendo as contas, percebe-se também facilmente que essa diferença é mais que proporcional aos respectivos acréscimos de custos.

Claro que a miríade de interacções que a “necessidade” de leite desencadeia, promove actividades que suportam empregos, cuja remuneração permite ao metalúrgico que galvaniza a tubagem que equipa o estábulo das vacas leiteiras consumir leite. O circuito parece perfeito e por isso se diz que gera riqueza. Mas gera que riqueza e a quem ?
Qualquer economista de boa escola ficaria escandalizado com a questão. De facto, para o status-quo económico, o mérito das cadeias de valor está tão assente quanto a necessidade alimentar do leite magro, e o facto de se ter tornado inquestionável funciona como a camuflagem ideal de uma realidade paralela. É que todo o dinheiro de que a cadeia carece para funcionar ou a que dá origem passa pela Banca. Ora é a convergência na represa bancária, e não a satisfação de necessidades reais, que dá verdadeiro sentido a todos os pequenos movimentos monetários que ocorrem ao longo da cadeia de valor, porque lhes confere a massa crítica de que o capital financeiro acoplado à banca necessita para as suas práticas especulativas. Esta a grande perversão do mercado na modernidade capitalista.
Ora, independentemente de se ser a favor ou contra o capitalismo como sistema, talvez fosse altura de olhar para a nossa lista de compras através de uma matriz crítica que levasse em conta não apenas o factor preço mas também a real necessidade do que nos é proposto. A menos, claro, que se entenda como correcto que a fileira do leite “alimente” mais a banca e o capital especulativo que lhe está associado, que os consumidores. É que, a partir do momento em que se pensa na economia como geradora de produtos financeiros e não como estrutura de produção de bens, tornou-se irrelevante o que se produz ou o que se consome, desde que se traduza em dinheiro. E nesta medida o sistema de encaixe existente, o mercado, funcionando segundo as regras de um acoplamento que não se questiona entre lucro como objectivo e necessidades induzidas como motor, alheia-se da limitação natural e do sentido ético que deveriam estar sempre associados aos recursos sobre os quais se estruturam as cadeias de valor.

Ou seja, despejada a caixa de Lego sobre a mesa, nem a mesa é assim tão grande que nela consigam caber quantos jogadores o quiserem, nem as peças suficientes para que cada um dos que obtém lugar consiga construir sobre ela o castelo dos seus sonhos. E o mercado até sabe disso! Daí que dê a maior importância aos iogurtes com sabor a banana, pois é essa a condição para que uns quantos, embora já crescidos, continuem a construir alegremente os seus castelos de Lego, enquanto os outros fazem o que podem com as embalagens vazias.





Nota.


Gostava de ilustrar este post com um trabalho de BD da autoria de Jörg Müller. Na impossibilidade, deixo a recomendação: "Der Stanhafte Zinnsoldat” ou, como se diz em português, “ O Soldadinho de Chumbo”, mas não conheço nenhuma edição em português. No entanto, como o livro não tem legendas, é fácil de ser lido mesmo por quem não sabe alemão, como é o meu caso.