segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Alternativas Caprichosas



O desenho conceptual das tecnologias associadas à exploração energética das fontes ditas renováveis, encaixa num modelo de cultura e organização social e económica que não tem nada a ver com o funcionamento do actual paradigma civilizacional do ocidente.
Em anteriores oportunidades coloquei a tónica nas questões de escala, ou seja, da dimensão física que lhes seria requerida para corresponderam às enormes produções que lhes seriam exigidas para se afirmarem como alternativa efectiva aos combustíveis fósseis, bem como dos impactos inerentes. Mas elas têm outras limitações. Particularmente uma natureza caprichosa, que tentarei esclarecer e ilustrar dentro das limitadas possibilidades do meu domínio destas matérias.

O caso é que a gestão convencional da produção de energia da modernidade ocidental assenta num esquema simples. De um lado coloca-se um reservatório onde se acumula a fonte (montanha de carvão, barragem cheia ou super-petroleiro) e do outro o mecanismo que a transforma (central térmica, turbina hidráulica, motor de combustão) em electricidade, calor, movimento. Desde que os reservatórios estejam abastecidos, a produção decorre de acordo com as necessidades do utilizador.
Como é que o utilizador estabelece essas necessidades? Segundo pressupostos de disponibilidade permanente. Isto é, a lâmpada deve acender independentemente da hora a que eu resolva accionar o interruptor. Apenas isso? Não! Além dessa disponibilidade permanente, exige-se ainda elevada performance, quer dizer, elevada capacidade de produzir trabalho, o que implica não apenas um fluxo contínuo, mas um fluxo contínuo de elevada potência. Ou seja, o sistema tem que estar preparado para responder à minha decisão aleatória de neste momento ter apenas uma luz acesa ou, ao mesmo tempo, as máquinas de roupa e loiça, a TV e o ar condicionado.

Ora neste aspecto o abastecimento de electricidade não é como o abastecimento de água! Neste, basta controlar o nível do reservatório, pois com a rede em carga eu uso a água (abro e fecho a torneira) à medida das minhas necessidades igualmente aleatórias, mas a água só corre quando eu abro a torneira ( sistema fechado) e só depois disso se enche de novo o depósito. No caso da electricidade não é assim, pois não há “reservatório” cheio de electricidade. De facto, embora o meu contador só se mova quando eu acciono o interruptor, para que eu disponha de corrente no sistema a electricidade tem que estar a ser permanentemente gerada, seja usada ou não, acontecendo que a que não é não volta a qualquer reservatório – perde-se apenas ( sistema aberto )! Voltando à comparação com o subsistema água, seria como se para dispor de água eu tivesse que ter sempre a torneira aberta.

É em relação a este pressuposto de abastecimento ( fluxo continuo de elevada potência ), que é estruturante da produção de energia eléctrica, que as tecnologias mais em voga no uso das renováveis revelam o seu grande handicap: o temperamento caprichoso e aleatório das respectivas fontes. Ou seja, não é possível accioná-las á la carte de acordo com as necessidades do utilizador, pois não se encomenda vento, sol, chuva ou ondulação marítima.

A solução ideal seria armazenar a energia que se pode produzir quando Hélios, Éolo ou Neptuno estão para aí virados. Mas como ainda não foi inventada uma super-bateria capaz disso, os campos de aerogeradores ou de painéis fotovoltaicos arriscam-se a trabalhar inutilmente sobre “vazios” de consumo e a estar parados nos respectivos “picos”. Quer dizer, são sistemas que não dão quaisquer garantias de conseguir gerar fluxos contínuos de energia e por isso não são capazes de assegurar o funcionamento do modelo de consumo instalado.

De facto, o “metabolismo” energético do modelo de ordenamento vigente, centrado nas grandes aglomerações urbanas, não se compadece com o temperamento instável das divindades “alternativas”. Em 2007, por exemplo, o parque eólico da EDP ficou-se pela produção de 24% da potência instalada (cerca de 500 Mw). Desta produção não encontrei dados publicados relativos à sua distribuição sazonal e destino. Mas em Dezembro e Janeiro últimos ( período de pico de consumos devido à procura de energia para aquecimento ) é público que o parque eólico nacional esteve praticamente parado devido à permanência sobre o território de uma extensa crista anti-ciclónica. Estas são razões bastantes para colocar em questão a utilidade ( no sentido da oportunidade da produção ) da “capacidade teórica”das alternativas instaladas.

Para que se tenha uma ideia prática, veja-se que em 2005 o consumo eléctrico só de Lisboa (cerca de 3500 GWh) correspondeu a cerca de 40 % da produção nacional de todas as fontes de energia renovável (próxima de 9000 GWh). Teoricamente poderíamos então dizer que temos energia de fontes renováveis de sobra para abastecer a Capital. Mas teria a variabilidade da distribuição desta produção sido capaz de responder aos consumos constantes da cidade ? Duvido muito !

Por conseguinte as fontes de energia renováveis actualmente em exploração, devido à variabilidade intrínseca à sua natureza, estão vocacionadas para funcionar numa lógica de complementaridade, sim, mas na pequena e média escala em que a produção de um fluxo contínuo de elevada potência não seja imperativo. Nessa medida o seu uso pressupõe uma filosofia de vida e de ordenamento do espaço distintas da actual. Nessas condições, o biogás, a hídrica, a fotovoltaica, a aerogeração, a biomassa ou os biocombustiveis, poderão ser capazes de reduzir custos e entropias, optimizando o seu uso como fontes de energia. Mas numa sociedade alternativa. Não nesta.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A Sustentabilidade das Energias Alternativas

Ao procurar melhorar os seus níveis de bem estar e de progresso, as sociedades ocidentais atingiram níveis de utilização de energia assinaláveis. É um facto.

Contas feitas pelo Eurostat para 2006, davam conta de que a UE a 25 consumia per capita o equivalente a 3,6 toneladas de petróleo, e ainda assim muito longe dos EUA que, com uma capitação equivalente de 7,8 toneladas, liderava o ranking mundial.

Em consequência, por razões de preço, de escassez, ou de origem geográfica, a dependência das fontes de energia que têm suportado a grande fatia destes consumos, nomeadamente as fontes fósseis, constitui um factor de insegurança numa sociedade que, nas últimas décadas, tem visto o seu funcionamento estruturado sob a ditadura desta dependência. As contas do Eurostat indicavam que 52 % da energia consumida na EU a 25 em 2006 era de importação, e essencialmente composta por petróleo, gás e seus derivados que, juntamente ao carvão, constituem cerca de 80 % das fontes da energia consumida na União.

Daí que as energias alternativas tenham entrado com naturalidade no discurso corrente de qualquer frequentador de café, granjeando a simpatia geral. Jornais e telejornais dão ampla cobertura a uma infindável parafernália de especialistas dos mais variados quadrantes, para quem tudo tem solução alternativa. Do etanol ao biodiesel, das eólicas às fotovoltaicas, estas fontes de energia são apresentadas com honras devidas a coisa revolucionária. A tal ponto que se fica com a ideia de que da dependência energética ao aquecimento global, não haverá nada que elas não sejam capazes de resolver.

Há no entanto nesta dinâmica, que por razões nem sempre energéticas e raramente ambientais passou a ocupar lugar central na agenda dos média e do poder, algumas questões sobre as quais vale a pena reflectir. E desde logo o uso indevido que nelas se faz de conceitos capazes de passar para a opinião pública uma imagem distorcida e desfocada da principal questão que efectivamente deveria ser central numa reflexão em matéria de energia: precisamos de fontes alternativas de energia ou de politicas de energia alternativas ?

Os conceitos foram criados para dar sentido à comunicação. No entanto, a escolha de vocábulos para os dizer, ao pretenderem significar o que não significam, acabam por conduzir à criação de autênticos mitos. É o caso do conceito de “alternativo” aplicado à energia.

A qualidade do que é alternativo é atribuída à coisa que pode ser utilizada em lugar de outra. Perante o actual panorama de utilização de fontes de energia, em que claramente predominam as de origem fóssil, quando se fala de “energia alternativa” deveríamos portanto subentender que se alude a uma fonte que pode substituir as fontes fósseis, que são classificadas como “fontes clássicas”. Assim sendo, as fontes ditas “alternativas” teriam de ser capazes de substituir as que se usam, produzindo a mesma quantidade de energia. E as “alternativas renováveis”, teriam, além disso, de ser capazes de se regenerar ciclicamente para assegurar sempre o mesmo nível de disponibilidade. Se as estes requisitos acrescentarmos a necessidade de “fontes limpas”, completa-se o quadro com a necessidade de, da sua produção e uso, não decorrerem impactos irreversíveis.

Ora no caso da Europa a 25, as desejadas fontes de energia alternativas, renováveis e limpas, teriam então de ser capazes de suprir os tais 80 % do consumo energético da União, pois é dessa ordem de grandeza a dependência Europeia de fontes “clássicas” de origem fóssil ( carvão, petróleo e gás natural ) que, como se sabe, não são renováveis nem são limpas.

O esclarecimento dos conteúdos destes conceitos não é um preciosismo semântico, e disso demos conta em posts anteriores em que se tentou abordar a inviabilidade do projecto Europeu de substituir até 2010, 5,75% do consumo de diesel por biodiesel, solução que vem sendo divulgada como alternativa, renovável e limpa.

Os mesmos problemas de escala que se colocam à produção dos biocombustíveis podem ser extrapolados para as restantes fontes de energia ditas alternativas. Porque uma coisa é a natureza da fonte, outra, completamente distinta, o método de extracção do seu potencial energético. De facto, o uso do vento para limpar o trigo numa eira, do sol para o secar ou da água para mover as pedras da azenha que o farinava, poderiam ser considerados usos limpos, porque os impactos inerentes eram facilmente diluídos dada a sua reduzida escala. Mas, quando daí se passa para os aerogeradores, para as barragens hidroeléctricas ou para os campos de painéis fotovoltaicos, o panorama muda completamente. Muda porque se trata de uma tecnologia de aproveitamento diferente. Muda pela natureza dos processos industriais associados à respectiva construção, seja pelo tipo de matérias primas que utilizam, pela incorporação massiva de energia que o seu fabrico e instalação pressupõem , ou ainda pelos impactos directos que têm no ambiente dos territórios em que são localizados ( acessos viários e de rede eléctrica ). Mas muda sobretudo pela escala pressuposta, que conduz a rupturas permanentes. Em grande escala, impactos que poderiam ser resolvidos pelos ciclos naturais e por conseguinte toleráveis, deixam de o ser.

Nessa acepção, não são limpos os impactos directos dos campos de aerogeradores , nem das barragens sobre as bacias hidrográficas em que são construídas. Não são limpos os impactos indirectos decorrentes dos processos de fabrico nem do betão das barragens, nem das ligas metálicas dos aerogeradores, nem dos componentes dos painéis fotovoltaicos, nem de toda a logística associada ao seu transporte, instalação e operação. Também não é limpa a energia nuclear, pois além dos riscos associados à sua exploração, continua por resolver o destino dos lixos radioactivos que produz. Mesmo em relação ao eventual desenvolvimento da tecnologia da combustão do hidrogénio, que não tem dióxido de carbono mas apenas água como subproduto, e que por conseguinte e nessa acepção, poderia ser considerada uma fonte de energia limpa, importa que se diga que o processo de produção, quer de hidrogénio quer dos motores que o utilizam, é tudo menos limpo. Todos têm impactos e impactos significativos, que vão muito para além da emissão de CO2 e outros gases com efeito de estufa! E se produzidos em grande escala esses impactos tornam-se incomportáveis!


A abordagem das questões associadas às fontes de energia ditas alternativas padece pois de vários vícios.

O primeiro é considerá-las como alternativa por oposição aos combustíveis fósseis, ditos clássicos, quando na prática o seu uso é anterior a estes. Se exceptuarmos o nuclear e o hidrogénio, elas são antigas. O que mudou não foram as fontes, mas a tecnologia de aproveitamento , o uso e a escala em que são solicitadas !
O segundo, é que são apresentadas como alternativas em relação às fontes fósseis quando, no estado actual do conhecimento da ciência e da técnica, mesmo juntando todas as soluções que têm sido preconizadas e ignorando os seus impactos , elas não seriam capazes, por razões de inviabilidade intrínsecas à escala pressuposta, de suprir nem o modelo de utilização vigente, nem os níveis de consumo instalados com base nos combustíveis fósseis.
O terceiro, é serem consideradas renováveis, quando na prática as quantidades em que é suposto serem produzidas são de tal ordem que, ou não há espaço, ou não há vento, ou sol , disponíveis para as suprir.
O quarto, é que, pela mesmas razões de escala, estas fontes de energia também não são limpas. Os meios de produção, exploração e distribuição que envolvem, mantêm ou conduzem a impactos que estão para lá da capacidade de suporte dos sistemas em que se situam.
Em quinto e último lugar, porque mistificam a questão energética. O problema energético da humanidade, e muito em particular das sociedades ocidentais, não é um problema de fonte, mas de consumo.


A discussão centrada na procura de fontes de energia alternativas corre, por isso, o risco de funcionar como fait-divers para essa outra realidade muito mais contundente e determinante que tem que ver com modelos e padrões de consumo irracionais, e que só se resolve com políticas alternativas que claramente ponham a tónica na sua redução.


No caso da energia, essas políticas passarão pelo uso de fontes diversificadas, implicando revisão urgente de critérios de ordenamento do território; passarão pelos preços ao consumo, por soluções arquitectónicas e de engenharia; passarão eventualmente por miríades de outras questões técnicas, económicas ou financeiras; mas por onde não podem deixar de passar é pela revisão do paradigma da sociedade de consumo e pelo controlo do Estado sobre os sectores estratégicos da economia. A menos que se esteja a ver o Comendador Joe Berardo ou o Senhor Américo Amorim preocupados com a sustentabilidade energética do nosso modelo social…

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Biocombustíveis em Revista


Sobre biocombustíveis já se escreveram “resmas”e não é difícil prognosticar que muitas mais teclas vão ser batidas sobre este assunto. Mas qual a síntese possível neste momento?

A natureza moderna da coisa “biocombustível” parece estar razoavelmente delimitada em redor de produtos carburantes com origem em espécies vegetais que se possam cultivar. Não sendo um conceito novo ( há milénios que o azeite era usado como combustível ) aos biocombustíveis da modernidade é no entanto feita uma exigência peculiar, que é a de se constituírem como alternativa aos derivados do petróleo e nessa condição serem úteis ao nosso modo de vida, abastecendo os depósitos dos mais variados tipos de motor de cujo funcionamento depende o nosso modelo civilizacional.

Este requisito tem como implicação imediata que a eles, biocombustíveis, se pede, além de características físicas e químicas específicas, um elevado potencial calórico, essencial à obtenção da potência que requeremos desses motores. Do que tem sido ensaiado para este efeito, as preferências têm recaído sobre os álcoois (etanol) e os óleos de origem vegetal.

A produção de etanol decorre da fermentação alcoólica de plantas ricas em hidratos de carbono. O milho e a cana do açúcar têm sido as mais utilizadas. Os óleos vegetais mais usados têm sido obtidos por extracção de sementes oleaginosas, com a soja, a palma, a colza e o girassol a liderarem a lista. Com a tecnologia até agora utilizada, no entanto, nenhum deles se revelou capaz de atingir as performances calóricas dos derivados do petróleo. Comparativamente à performance calórica de 1 litro de gasolina ( cerca de 10.000 kcal ) o melhor que se consegue obter de um litro de etanol (o mais energético) é cerca de 70% desse valor.

Ainda assim, a viabilidade técnica da incorporação de certas percentagens de etanol na gasolina ou de biodiesel no diesel parecem razoavelmente resolvidas sem modificações significativas dos motores existentes. Do uso directo de um ou de outro, também não parece que decorram impactos que não estejam já associados aos combustíveis convencionais ( gases de escape e poluição, e os problemas associados às logísticas de transporte). Além disso progressos tecnológicos da física e da química têm vindo a permitir melhorar limitações técnicas de vária ordem, pelo que não é difícil de prever que em poucos anos quaisquer destas performances possam ser melhoradas, não se afigurando pois a questão técnica como um problema estrutural novo ao uso dos biocombustíveis ou, no mínimo, digamos assim, não constituem matéria de polémica original.

A controvérsia sobre a utilização de solos agrícolas para produzir combustíveis ou para produzir cereais, essa sim, questão estrutural, também não é propriamente original. Não é na medida em que há décadas que a agricultura industrial tem vindo a fomentar outras estratégias de produção irracionais, como têm sido as que estão na base da pecuária industrial. Entre produzir milho para engordar frangos em aviário e fazê-lo para a produção de combustíveis existe uma diferença, de facto, pois os 2,3 kg de milho em grão que são necessários para produzir um litro de etanol bastariam para resolver as necessidades de manutenção de uma família de quatro pessoas durante dois dias. No entanto, com 2,3 Kg de milho também não se produz muito mais que duas asas do frango, o que manifestamente também não daria para alimentar quatro pessoas durante dois dias. Portanto, estamos apenas perante lógicas semelhantes ( de desperdício ) de gestão de recursos primários.

A questão da rentabilidade energética da produção dos biocombustíveis, i.é, de se saber se para produzir um litro de biocombustível não se estará a gastar mais energia que aquela que desse litro se pode retirar, também não é propriamente original. D.Pimentel, por exemplo, investigador português radicado na Univ. Cornell e que se notabilizou pelo pioneirismo na introdução da análise energética nas actividades económicas, tem vindo a liderar a produção de relatórios arrasadores para os biocombustíveis e pondo em causa a euforia que se gerou em redor deles ( Pimentel e Tadzek, 2006 ). Para o biodiesel de girassol produzido no EU, Pimentel defende que o seu custo energético é superior em 118% ao seu potencial calórico, i. é, custa mais do dobro da energia que produz!
Como já referi noutras ocasiões, Pimentel inverteu a lógica clássica da análise dos processos produtivos, que se apoia nas tradicionais relações custo vs benefício financeiro, propondo em seu lugar o balanço input-output da energia envolvida nesses processos. Por este prisma, negócios lucrativos, como a importação de bifes da Argentina para Portugal, revelam-se energeticamente desastrosos: a despesa energética para fazer chegar a “vazia” da vaca argentina a Portugal é idêntica ao valor energético da carcaça inteira!
Claro que este tipo de análises ganhou a inimizade imediata da agro - indústria e a profunda antipatia da indústria petrolífera, pois revelou que a população mundial deixou de se alimentar mediante o aperfeiçoamento das técnicas de captação de energia solar, para passar a consumir directamente combustíveis fósseis sob a forma de alimentos! No caso dos biocombustíveis, as reacções também não se fizeram esperar, e têm surgido inúmeras “cátedras” que, apoiadas em metodologias diversas, defendem ganhos líquidos significativos de energia decorrentes da sua produção ( Journey to Forever, " Is ethanol energy-efficient?.").

Mesmo que se opte por não tomar partido nesta polémica e se procure algures “na média” dessas oposições, por vezes extremadas, a “verdade”, a conclusão não é animadora, ou seja, legitima a presunção de que uma parte muito significativa dos biocombustíveis disponíveis contenha efectivamente menos energia do que a investida na sua própria produção! Isto é, em muitos casos e na melhor das hipóteses, estaremos numa mera dinâmica de troca de energia por energia.

Quando analisadas parcialmente e em abstracto, qualquer dos aspectos referidos anteriormente vale o que vale. Os problemas reais dos biocombustíveis surgem quando se chega à pratica e à necessidade de resolver “quanto, como, e onde”. É aqui que se evidenciam os sinais de que estamos perante uma magna farsa em cena. Com a tecnologia disponível, para produzir com milho etanol equivalente a 10% do consumo actual de gasolina dos EUA, seria necessário algo como cinquenta milhões de hectares, ou seja, dez Franças agrícolas não chegavam! Cá por casa merecia a pena que se estivesse atento ao exemplo da Galp, que ao divulgar que necessita de 700.000 ha para substituir 5% do consumo nacional de diesel por biodiesel de girassol, parece que nem se apercebe que está a referir-se à ocupação sistemática, ano após ano, da totalidade de área agrícola útil a sul do Tejo !

E é este o grande drama da generalidade dos problemas ambientais do nosso tempo e também da questão dos biocombustiveis: escala ! Tudo aquilo em que se pensa implica dimensões incomportáveis. Além disso, a agricultura não é como uma fábrica de parafusos, onde para mudar de orientação produtiva baste substituir as máquinas e reciclar o pessoal. Tem outros tempos de maturação e deve submeter-se a princípios de ordenamento estratégico e de racionalidade sem os quais o esbanjamento do capital de fertilidade do solo passa a ser um desastre com dia marcado. A preservação dessa fertilidade implica o cumprimento de regras de ocupação e de rotação de cultivos que o empresário agrícola não deve ser levado a mudar por razões meramente conjunturais. Quando tal acontece criam-se desequilíbrios regionais importantes, e acentuam-se assimetrias de vária ordem.
Em Portugal, por exemplo, ainda está viva a memória dos impactos negativos da que ficou conhecida como “campanha do trigo”. Ora a valorização económica ( artificial, porque subsidiada ) dos produtos agrícolas a partir dos quais é possível produzir biocombustiveis, promove oportunismos naturais que já estão a ter impactos: por um lado levando ao uso agrícola de terras marginais que eventualmente nunca deveriam ser usadas na agricultura ( o caso do óleo de palma na Indonésia e da soja na Amazónia , passado em revista no Herald Tribune de 27 de Março passado); por outro, induzindo lógicas de monocultura em solos que não a suportam ( os do Ferreira do Alentejo, p.e. - Expresso de 16 de Fevereiro ); finalmente, dando azo a processos que insuficientemente avaliados podem dar origem a novos e inenarráveis cascatas de problemas, como é exemplo a ideia peregrina de produzir biocombustíveis com algas ( Expresso de 19 de Janeiro ).

Sendo embora bem provável que num futuro não muito distante as performances associadas à produção e uso de biocombustíveis possam vir a ser significativamente melhoradas, a actual pressão política para a procura urgente da alternativas aos combustíveis fósseis, envolvendo importantes incentivos financeiros, faz da produção agro-industrial de biocombustíveis a partir de combustíveis fósseis um excelente negócio! Mais que na produção agrícola em si, estão em causa excelentes oportunidades de novos negócios na instalação das plataformas industriais necessárias à sua transformação! Nesse sentido têm vindo a ser induzidas dinâmicas de curto prazo cujas consequências estruturais são dificilmente reversíveis, mesmo quando o médio prazo vier a confirmar o que para muitos já é óbvio, isto é, que deste processo não decorrem mais valias energéticas significativas e que a questão quantitativa não pode ser contornada. O grande problema é, continua a ser, de facto, a enorme escala dos números actuais de consumo de combustíveis. Para essa ordem de grandeza, não existem alternativas!


terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Soil Conservation Services

É natural que a maioria das pessoas que reconhecem o Prof Henrique de Barros o associem à sua actividade política e em particular à Presidência da Constituinte ( 1975/76 ) onde deixou a sua marca de grande humanista. No entanto H de Barros foi também um proeminente agrónomo e em particular um excelente teorizador da economia agrária, matéria em que fez escola.

Recordei-me do Professor a propósito da forma como classificava a terra agrícola. Para H de Barros a terra agrícola era “capital” e para a distinguir de outros bens de capital que contribuem para a produção agrícola, subclassificava-a como “capital fixo inanimado”.

Como é evidente H de Barros sabia que a terra agrícola, ou seja, o meio em que se realizam as culturas e que os agrónomos gostam de designar por solo, não é uma entidade inerte mas um ecossistema vivo de cuja dinâmica e equilíbrios depende o sucesso da actividade agrícola. De resto, terá sido seguramente por isso que o referia como “bem de capital”, para assim sublinhar o seu carácter de património essencial estruturante e inalienável.

Contrariamente a uma ideia equívoca muito corrente nos nossos dias, o solo agrícola e a sua fertilidade não são exactamente dados naturais. O solo é uma criação do homem. Foi a actividade humana que, aproveitando condições naturais de elevado potencial fértil ( vales de aluvião, por exemplo ), as preparou para a agricultura através de uma prática a que H de Barros chamaria de benfeitorias sucessivas. Hoje observamos essas benfeitorias sem sequer delas nos apercebermos porque a nossa percepção da paisagem agrícola não tem um “antes” de referência. Por isso, quando se observa uma seara nos barros negros de Ferreira do Alentejo não percebermos que subjacente se encontra “apenas” a incorporação do trabalho de gerações inteiras graças ao qual hoje existimos.

O solo, como bem patrimonial, incorpora saber e trabalho. O seu bom uso está sujeito a princípios universais, mas as regras específicas desse uso são de feição local ( culturais ), obedecendo por isso a pressupostos e tempos padrão que não são necessariamente deslocáveis geograficamente .

Na década de 30 do século passado, o mau uso do solo protagonizou o mais conhecido acidente ecológico do género da modernidade. Ficou conhecido por “ Dust Bowl years” e aconteceu no midwest dos Estados Unidos América. Colonos arvorados aprendizes de agricultores viram nas intermináveis pradarias um maná de oferendas e cometeram um erro típico do etnocentrismo ocidental, que é considerar que o que é válido para a Europa é igualmente válido para o Mundo. Não é ! A que seria uma prática agrícola “suportável” nos solos europeus desestruturou os das pradarias em menos de uma geração. Alguns simplistas gostam de atribuir o fenómeno a uma grande seca climática. Mas se tivesse sido só isso o governo federal dos EUA não teria criado o SCS – Soil Conservation Services, a primeira instituição de carácter marcadamente ecologista, para gerir a crise e prevenir novas ocorrências, o que fez reordenando o uso do espaço e a prática agricola.

Claro que perante uma situação em tudo idêntica, nenhum SCS foi criado para o Sudão em meados dos anos setenta. Depois de décadas ao serviço da produção de algodão para a indústria têxtil da Majestade Britânica, os solos agrícolas do sul do país esgotaram deixando milhões à deriva. Quem hoje consome à hora do jantar as reportagens sensacionalistas que se produzem sobre o Darfur, tem opinião formada de que se trata de um mero problema de conflitos tribais entre senhores da guerra. Será. Mas originada por uma imensa mole humana que deixou de puder subsistir pela agricultura tradicional, inviabilizada pela agricultura industrial do ocidente, e por isso migrou sobre os seus vizinhos. Contrariamente aos britânicos, que estavam no Sudão de “passagem”, os americanos estavam no midwest para ficar. Apenas por isso e porque a América do tempo não era a Africa pós-colonial, o midwest não “darfurizou”!

A pressão da agricultura industrial capitalista sobre os solos agrícolas deitou pelo cano séculos de sabedoria. Nada supera a capacidade destruidora de um tecnocrata para quem qualquer questão agrícola se resolve mediante regra de três simples em que a expressão da cash-crop depende da potência do tractor, da quantidade de adubos e de um bom programa de uso de pesticidas. Para este tipo de gestor da modernidade agrícola que se pretende sucedâneo do agricultor, o solo deixou de ser bem de capital passando a mero factor de produção, e como tal usado e contabilizado como outro custo qualquer. Por isso não hesita em aderir ( e nós com ele ) a novos projectos de "malfeitorias sucessivas" que mais não são que autênticas sementeiras organizadas de miséria. Estou a falar dos biocombustiveis !

Num momento em que na Europa aparecem os primeiros sinais de realismo quanto aos impactos de mais esse projecto típico do autismo de certa intelitgencia, já as grandes petrolíferas ( GALP incluída ) avançam em África e na América do Sul com projectos de depauperação permanente de capital-solo alheio a troco de uma ilusória prosperidade transitória.

Se H de Barros e outros agrónomos da sua geração como Emidio Guerreiro, C. Carvalho ou Lobo de Azevedo soubessem destes projectos, exclamariam perplexos: "mas aquilo são só latrites "!! Com tarimba feita nos projectos agrícolas da África colonial, qualquer deles tinha o saber de experiência feito do que acontece na maioria dos solos do hemisfério sul quando submetidos à agricultura industrial - claudicam ! Mas como essas memórias de homens sábios deram lugar à mesquinhez dos imediatismos saloios, não se vê quem manifeste perplexidade quando a GALP firma com a PETROBRAS um acordo para a produção no Brasil de 700.000 hectares de oleaginosas para ajudar a suprir a irrisória quantia de 5%, repito, 5% do nosso consumo de gasóleo ! Nem sei mesmo se alguém terá ideia de que estamos a falar no uso de uma área equivalente a 70% do capital agrícola de Portugal !

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Razões de Potência

Para qualquer dos “saltos em frente” de todos os processos civilizacionais, os homens necessitaram sempre de ter resolvida a questão básica do seu aprovisionamento energético, isto é, de comida ! Nesse sentido a História do Homem poderia muito bem ser reescrita sob a égide da energia. De facto, as leis naturais que gerem as trocas de energia exerceram o seu primado antes de os homens terem produzido as suas leis da política ou da economia. E nos dias que correm a questão energética continua a ser central no debate político e económico, embora o economista a designe sob o genérico de “gestão de recursos” e o comum mortal muito pragmático o reinterprete segundo a prosaica noção de “ter ou não ter dinheiro”.

O aprovisionamento organizado de excedentes de energia teve e tem na agricultura a sua fonte de excepção. Os sistemas agrários da era pré-industrial, nomeadamente os que foram normalizados pela tradição romana na bacia mediterrânica, incorporaram na perfeição a ideia de “ecossistema de substituição”, ou seja, um ecossistema manipulado pelo homem e nessa medida artificial ( como são quase todos embora em graus variáveis) mas que preservava na sua dinâmica os princípios essenciais relativos às trocas de energia renováveis( sustentáveis ), ou seja, comida a troco de trabalho directo na sua produção.No entanto, e apesar de consideráveis progressos da técnica, o fluxo de recursos energéticos propiciado pela agricultura na sociedade rural, estava limitado pela capacidade de produzir trabalho ( potência) do homem e do animal de tracção. Assim, com uma capacidade limitada de “artificializar” o ecossistema agrícola ( na reposição da fertilidade dos solos a seguir a uma cultura, por exemplo ) as sociedades rurais funcionavam dentro de sistemas complexos de limitações cruzadas tendo por isso de se sujeitar a tempos-padrão de várias ordens. Esta sujeição, sempre conflitual, funcionava contudo como factor de auto-regulação, na medida em que em igualdade de condicionalismos geográficos e tecnológicos, colocava a quantidade de energia que uma sociedade era capaz de obter na dependência directa e muito próxima da capacidade de trabalho efectivo que os seus elementos eram capazes de investir na sua produção.

Em textos anteriores referi que a ecologia assume como adquirido que os ecossistemas que conhecemos não são “originais e imutáveis”, isto é, eles são o resultado de dinâmicas permanentes de alteração. Estas alterações decorrem de reorganizações das relações de força internas ao sistema, mas também podem ser causadas por factores externos que actuam nas zonas de contacto com outros ecossistemas, pois nenhum deles é entidade “estanque”. Referiu-se também que a mudança no interior de um ecossistema decorre dentro de faixas de tolerância limitadas por factores vários. Entre eles, velocidade e escala. Se num momento qualquer de um ecossistema em equilíbrio uma das espécies que o compõem domina uma técnica que lhe permite aumentar drasticamente a velocidade e a escala de captura de outra de que se alimenta, o sistema pode entrar em ruptura quando o ritmo de reprodução e crescimento desta deixam de ser capazes de responder à depredação da primeira.

Ora o motor de combustão interna e o uso do petróleo foram inovações tecnológicas que trouxeram ao ecossistema humano a possibilidade de acelerar drasticamente o seu ritmo num curto espaço de tempo. Com a assombrosa ordem de grandeza das potências que passaram a estar disponíveis, não só se alteraram completamente as antigas dependências, como a velocidade e a escala a que passou a ser possível agir sobre o meio mudaram inclusive a acepção tradicionalmente lenta do conceito de mudança.

Às limitações antes colocadas pelo tempos-padrão e pelos tempos de recuperação dos ecossistemas , a nova tecnologia respondeu com a potência. Se o factor limitante para o cultivo em anos consecutivos de batata na mesma parcela era o esgotamento do solo em fertilizantes como fósforo e potássio, a importação de fosfatos do Chile e a síntese dos adubos potássicos em unidades fabris foi a solução permitida pelas novas variáveis em jogo. Se o abastecimento de um determinado tipo de pescado está condicionado pelo ritmo de reprodução da espécie, deriva-se para a aquacultura, onde o peixe é alimentado com farinhas de carne e a água oxigenada e purificada através de complexos sistemas de bombagem e filtragem Se o cultivo de certas flores não era possível no Inverno europeu por falta de temperaturas, produzimo-las em estufas aquecidas e iluminadas artificialmente. Se na Europa não existem terrenos disponíveis para o cultivo de oleaginosas para biocombustiveis, produzem-se nos países ACP de onde depois se transportam para a Europa.

O controlo de muito mais potência trouxe pois consigo uma nova forma de ver o mundo, onde tudo passa a suceder de forma mais rápida e a uma escala cada vez maior, mesmo global. Alterou-se ainda a noção de tempo, que deixou de ser padronizado por acontecimentos de longa duração, pois entre uma decisão de dimensão faraónica e a sua materialização interpõem-se tempos cada vez mais curtos. Mas destas dinâmicas pós industriais decorrem duas grandes consequências: a aceleração exponencial do ecossistema humano, que assim tem submetido os ecossistemas complementares a continuas dinâmicas de ruptura porque actua sobre eles em velocidade e escala que excedem o seu tempo de recuperação (caso tipico das pescas), e a enorme ilusão de que o homem se teria finalmente liberto do primado das leis que regulam as trocas de energia. Não só não o fez como está delas mais dependente que nunca, pela dupla razão da enorme dimensão populacional que entretanto a espécie atingiu, associada à condição não renovável do modelo de aprovisionamento energético em que se apoiou esse crescimento e a sua civilização.

Portanto, para a ecologia humana, as grandes questões suscitadas pela interacção do Sapiens com o ambiente, não têm nada a ver com a “ordem natural” da sua essência, discussão há muito ultrapassada, mas antes com a potência, velocidade e escala a que presentemente decorre a sua intervenção sobre o meio. Nesse sentido tem perfeitamente identificado que se trata de um modelo de interacção assente sobre uma artificialidade que tem tanto de eufórico como de irresponsável e insustentável, pois basicamente estruturou-se como edifico que se constrói sem fundações, funcionando com consumos de energia de fontes não renováveis e confiando em que novos milagres tecnológicos conseguirão em tempo útil resolver essa limitação.

Concluindo.

Quando se fala, e bem, em políticas ambientais capazes de conservar os ecossistemas naturais e a biodiversidade, teremos pois de clarificar o discurso sob pena de pudermos ser lidos como defensores de um regresso às hortas e de mais sucedâneos dos famigerados parques botânicos e jardins zoológicos. Embora haja muito quem aprecie colocar nestes termos o problema para logo lhe rejeitar as incómodas premissas, não é de nada disso que se trata.

A permanência duradoura das civilizações depende, como sempre dependeu, de soluções de gestão dos ecossistemas de substituição e não de ecossistemas naturais. São desse tipo os que construímos ( agricultura, aquacultura ). Eles não são incompatíveis com a biodiversidade. Pelo contrário, podem e devem potenciá-la, até porque isso significa uma maior variedade de soluções capazes de dar resposta sem colapso às nossas necessidades. Estas, contudo, deverão ser revistas em baixa a partir de uma estratégia que repense um funcionamento em relação mais estreita com os condicionalismos geográficos locais de forma a que se reequilibrem prioritariamente nesse contexto as trocas de energia do ecossistema humano , ao contrário do que tem sido a tendência altamente deficitária observada na sequência da revolução industrial.

Um paradigma de interacção que não integre estes pressupostos e que sacrifique o rendimento à potência, só pode resultar em projectos de ruptura pré-datada o que, de resto, podendo ser dramático, nem sequer é nada de novo na história das civilizações.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Harmonia natural ?

A ideia de “ harmonia natural” é proposta quando se pretende tipificar uma relação ideal com o ambiente. E recorre-se ao conceito de “equilíbrio” como sinónimo desse estado. No entanto, o uso desta analogia entre conceitos, e os próprios conceitos em si, podem conduzir a uma ideia deformada das características dessa relação com o meio.

Basicamente estamos perante a oposição entre duas lógicas de interacção. Uma de ordem humana, dita não natural; a outra, uma ordem não humana, logo, natural. Mas, a menos que se acredite numa terceira lógica pré-determinada ( do tipo “desenho inteligente”, p.e.) não há como separar a dinâmica de dominância que os homens empreenderam de outras de idêntico teor empreendidas por qualquer outro ser vivo, que só não terá atingido a hegemonia alcançada pelos humanos devido a limitações próprias à espécie ou a resistência alheia.

À primeira vista a questão pode parecer meramente académica mas, como tentarei demonstrar, tem outras implicações muito importantes na definição das nossas atitudes e eventualmente na nossa concepção das melhores políticas ambientais.


Temos de “harmonia” noções de ordem e concórdia agradável. E de “equilíbrio” noção de estabilidade num sistema. Assim, quando nos referimos a uma “harmonia natural” como “estado de equilíbrio na relação do homem com a natureza”, somos conduzidos a uma ideia do homem vivendo num contínuo agradável e sem sobressaltos, num ambiente que cada um idealiza segundo a sua própria concepção do “ paraíso ”. E se é verdade que há quem tenha do "paraíso" o entendimento de um sonho desejável, também não há menos quem o veja como algo que foi e já não é.

No entanto, o conceito de “ natureza” da ecologia não respeita a uma entidade parada num tempo e espaço ideais. Ele refere, sim, uma entidade dinâmica que se altera ao longo do tempo concreto e nesse processo altera também o espaço em que acontece – o ecossistema. Por sua vez, o conceito de equilíbrio não é utilizado para designar, como na física, um sistema de forças que se equivale. Por exemplo, dois pesos exactamente iguais e imóveis num balancé. Pelo contrário, ele integra uma noção de comportamento dinâmico. Assim, equilíbrio num ecossistema é a noção que se usa para dizer que as trocas de energia ( produtores vs consumidores ) no seu interior se compensam.

O que atrás foi dito não significa que durante a existência de um ecossistema em equilíbrio não ocorram fortes oscilações no seu interior, como épocas de fome ou períodos de quebra demográfica de uma espécie e crescimento anómalo de outra. Quer apenas dizer que essas oscilações ocorrem dentro de uma faixa de tolerância que não é fatal para os organismos que ali interagem e que por isso não compromete o sistema no seu todo ( conceito de capacidade de carga ). Voltando à metáfora do balancé, é o que acontece quando duas crianças de pesos semelhantes alternam a sua posição relativa com a ajuda do impulso das pernas - oscilam de forma alternada e irregular, mas só dentro dos limites do movimento que a estrutura do próprio balancé permite. Ou, se se preferir outra imagem, seria como um ponto imaginário evoluindo ao longo de uma mola deformada. Pelo que a ideia de “harmonia”não tem aqui cabimento.

Portanto, um ecossistema em equilíbrio não é exactamente o ambiente em que qualquer uma das espécies que o integram tem uma existência tranquila e uma interacção neutra, pacífica, expectante, com as restantes e com o meio. É característica das espécies modificarem o meio para nele se “encaixarem” procurando reunir as melhores condições possíveis para a sua sobrevivência ( nicho ecológico ), exactamente como o fez e faz o Homem. Esta dinâmica decorre num sistema complexo de condicionalismos recíprocos em que a componente geográfica tem um enorme peso e é inerente à vida.

No entanto, se concebermos o fenómeno "vida" como uma longa metragem, a percepção que dele conseguimos é próxima da que pode ter de todo um filme quem dele veja apenas uma única fotografia publicitária. E daí a ideia errada de que os ecossistemas naturais são sempre equilibrados e ainda de que apenas estes o são. Errada porque os ecossistemas que conhecemos não existem desde sempre tal como os vemos, nem são imutáveis. Os que existem são substituição de outros anteriores a eles por força da conjugação de forças várias que os modificaram para neles criar o seu próprio nicho, e que se mantêm activas e reactivas, mesmo quando sobre eles não se verifica qualquer acção humana.

Por isso, da noção de ecossistema, à ecologia humana interessa sobretudo o conhecimento dos princípios centrais que gerem o seu funcionamento nas faixas de tolerância onde o homem encaixa. A ecologia humana não tem questões pendentes com a “natureza” do ecossistema humano. Já o mesmo não se poderá dizer quanto às questões de potência, velocidade e escala que lhe estão associadas. E esse será o assunto do próximo post.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Ferro e Fogo


As análises comparativas parece estarem na moda. Usam-se entre escolas como entre países, e com elas pretende-se avaliar performances em registos que variam de acordo com os propósitos do “analista”, mas poderá dizer-se com alguma segurança que “servem para tudo e para o seu contrário".

Algumas análises feitas a partir de premissas comparativas são deveras pertinentes . Outras nem tanto. As situações mais complicadas ocorrem quando as comparações não se limitam a verificar as diferenças, e pretendem identificar as suas causas. Nestas abordagens, no entanto, existem algumas noções que importa ter presentes. Desde logo, a de que as sociedades são algo mais que uma panóplia de reagentes em condições laboratoriais. A segunda, é a de factor limitante.

Quando os agrónomos procuram uma forma simples de explicar a alguém os princípios da fertilização vegetal, recorrem com frequência a um exemplo de fácil compreensão. Imagina-se uma barrica daquelas antigas construída com várias aduelas de madeira. Facilmente se percebe que se uma só delas for mais curta que todas as outras, será apenas até ao nível dessa que se consegue encher de água a barrica. A aduela mais curta é a noção de “factor limitante” - aquele de cuja resolução depende a performance de todos os restantes. A produção de uma seara, por exemplo, não aumenta ( nível de água na barrica ) enquanto o teor de fósforo( aduela mais curta ) no solo não atingir o nível necessário, mesmo quando todos os outros nutrientes ( restantes aduelas ) estejam disponíveis nas quantidades satisfatórias.

Na seara, com análises de solo e foliares, até já vai sendo possível a identificação desses factores limitantes. Na sociologia, nem tanto. E daí que muitas vezes nos atarefemos todos a resolver bloqueios sociais que não se conseguem resolver pela simples razão de que não se identificou o factor limitante, a "aduela mais curta".

Procuremos um exemplo neutro.

Aparentemente não há divergência entre antropologia e história quanto à importância do domínio das técnicas do fogo e dos metais no progresso civilizacional. Ambas estão de acordo em que a posse de utensílios metálicos foi acelarador desse processo, devido à sua superior performance enquanto ferramenta capaz de ajudar o homem a moldar o meio em que vive.
Qualquer pastor de cabras das serranias da Panasqueira ( triângulo das pirites de Aljustrel ), sabe que se num dia frio e seco de inverno em que esteja uma aragem de norte, juntar uns bons cepos de azinho bem seco e fizer uma fogueira em cima duma talisca miúda, na manhã seguinte, quando for remexer nas cinzas, encontra lá no fundo uma plaquinha metálica. Sabe, além disso, que se passar o resto da manhã a fazer passar a dita por uma pedra de grés consegue uma lâmina, e se passar a tarde a amanhar um raiz de urze para lhe servir de cabo, ao fim do dia tem uma faca.

No entanto, esta ocorrência de minérios facilmente metalizáveis em afloramentos à superfície, não é um acontecimento geográfico frequente. Além disso, a possibilidade de dispor de madeiras duras de elevado potencial calórico ( necessário para fundir os metais ) também não é uma ocorrência frequente, sobretudo no estrato arbustivo onde, na ausência de ferramentas adequadas, ela teria de ocorrer.. Acresce que as condições climatéricas também têm neste processo a maior importância, pois em condições de elevado teor de humidade ambiente, a tal fogueira já não teria a mesma performance térmica.

Isto para dizer que à partida, seria sempre muito mais sensato apostar no antepassado do pastor alentejano como descobridor casual do metal e inventor do machado, que no Índio Ianomani , que, na Amazónia, embora dominando o fogo, viveu em condições permanentes de elevada humidade ambiente, sem afloramentos de minérios de ferro, nem madeira de elevada performance calórica no estrato arbustivo .

Neste exemplo comparativo, ao progresso social do Índio obstaram factores limitantes que podem ter-se constituído em bloqueio civilizacional.

Contudo, nada garante que, mesmo em igualdade de condicionalismo geográfico, os processos sociais de índios e alentejanos tivessem sido idênticos. E isto por duas ordens de razões. A primeira, tem a ver com o facto de que os seres vivos em geral e os homens em particular não serem agentes passivos na história. Isto é, perante estímulos idênticos, grupos distintos não reagem de igual forma, e o mesmo grupo raramente reage duas vezes seguidas do mesmo modo. A outra razão é a casualidade.

Perante a mesma chapinha metálica no fundo da fogueira da véspera, enquanto o antepassado alentejano da nossa ficção se teria lembrado a friccioná-la repetidamente contra uma pedra de grés e assim criou uma lâmina, o Ianomani poder-se-ia ter lembrado a manufacturar um brinco. As distintas motivações de um e outro e os processos diferentes que seguiriam a partir daí, podem ter por denominador comum apenas isso: uma casualidade distinta num momento chave.

O sucessivo entrosamento de casualidades e factores de natureza positiva, potencia os ciclos virtuosos. Mas as casualidades e os factores sociais também se podem associar de forma negativa em ciclos viciosos.Na perspectiva do tempo-longo da história, todas as sociedades viveram dinâmicas de ciclos virtuosos e viciosos. Não fosse assim e ainda hoje seriamos a Lusitânia Província do Império Romano. É evidente que as sociedades sempre se esforçaram por potenciar os primeiros e anular os segundos. Mas se o sucesso dessa empresa muitas vezes se pode atribuir a uma correcta identificação e acção sobre os factores limitantes, não deixa de ser verdade que a casualidade e o imponderável têm no processo social um peso incontornável e dificilmente controlável.