quarta-feira, 9 de abril de 2008

Navegando à Vista


Quando há mais de um século se plantaram boa parte dos montados que vão mantendo Portugal entre os maiores produtores mundiais de cortiça, ainda essa actividade não era subsidiada. Também não foram os subsídios que motivaram os trabalhos de terraceamento agrícola de muitas das nossas serras ou as despedregas do Barrocal Algarvio .Como uns e outros são exemplos de investimentos que só dão colheita para além da vida, tudo indica que teriam tido uma justificação bem distinta do carpe diem que hoje é a divisa predominante.

Não deixa pois de ser curioso que enquanto o nosso processo civilizacional se tem afirmado sob a égide do cientifico e do racional, por oposição e pela independência em relação aos condicionalismos naturais, tenhamos ao mesmo tempo deixado cair essa capacidade que os nossos antepassados revelaram de sonhar para a frente sem perder a ligação à terra.

Em vez disso sonha-se para trás à procura de uma harmonia idílica supostamente perdida, ou então faz-se profissão de fé na crença de uma ciência milagreira capaz de recriar um homem sem terra. É esta uma síntese possível da atitude dominante da interacção civilizacional da modernidade com o meio, e que tem na economia o seu mediador privilegiado.

Ora a economia tem-se encarregue de nos fornecer uma nova dicotomia, dividindo o mundo entre o rentável e o não rentável. Mas a ideia de rentabilidade da neo-economia capitalista, não é uma noção absoluta, é relativa, e basicamente serve-se desse sofisma para designar não a colheita que ultrapassa em quantidade de grão o que foi semeado, mas o que é lucrativo.

Assim, o interesse das actividades humanas deixou de depender de quanto se colhe mas de quanto vale a colheita no mercado. Este ponto de vista inquinou transversalmente a sociedade, derivando para um género de reducionismo funcionalista que explica as coisas pelos seus putativos efeitos e não pelo valor histórico dos princípios que as deviam nortear, cabendo à economia que governa reeditar com novas roupagens os velhos métodos de cabotagem. Mas a linha de costa que a orienta é uma miragem, pois o dinheiro que a guia não tem utilidade real. Sendo símbolo e não recurso, o dinheiro em si não consegue realizar a sua condição de equivalente de troca se não houver com que trocar. Ou seja, em última análise o dinheiro não se come e por isso não é elo de cadeia nenhuma.

Ora quando as politicas ambientais para se imporem se vêem na necessidade de se camuflar sob roupagens da versão vigente da rentabilidade económica instituida, asseverando aos seus destinatários novas oportunidades de mais valias comparativas e promovendo o natural como produto de consumo, algo tem que se considerar intrinsecamente enviesado ao nível dos princípios que as produzem. De facto, quando procedem desse modo essas politicas não se assumem como dinâmicas de ruptura com os pressupostos de planeamento económico e social que estão na base constitutiva dos problemas que pretendem combater. Em seu lugar, enveredam pela gestão de compromissos desviantes, derivando para as mais-valias económicas marginais do conservacionismo, mas não resolvendo na origem os impedimentos conceptuais ao desenvolvimento de modelos sustentáveis, uma vez que estes não têm solução no contexto da gestão dicotómica natural vs civilizacional.

Desde logo porque aprisionam o conceito de natural numa ideia de equilíbrio perene que é equivoca: tal como o civilizacional o que é natural também não é estático, e por conseguinte não é susceptível de ser “congelado” num momento qualquer da sucessão ecológica que nos possa parecer mais interessante ou de ser compartimentado dentro de fronteiras territoriais estanques às dinâmicas envolventes.

Depois, porque a lógica que preside às trocas que dentro dos ecossistemas são pertinentes para a vida humana, não se rege pelas regras da economia de mercado mas pelos princípios da termodinâmica.

Por último, porque a criação e gestão do natural como compensação ( rentabilizavel ) pelos impactos do civilizacional, na medida em que é assumida como uma cedência ao ambientalismo, transforma-se num paliativo. Não contesto que de um ponto de vista estritamente pragmático não decorram destas “cedências” benefícios efectivos para o ambiente. Mas esta dinâmica também contribuí para nos desviar da necessidade de encarar o individuo, a sociedade e o território, como uma só unidade de interacção na procura de um sentido.

10 comentários:

Anónimo disse...

A ideia de que plantar sobreiros só dá resultado para futuras gerações parece-me errónea. Afinal, antes de se poder retirar cortiça, actividades como a caça, a apanha de cogumelos, a pastorícia, etc eram certamente desenvolvidas. Mas mesmo se tal não acontece, se daqui a 100 anos um sobreiro tem um valor X, cada ano deveria valer X/100. "Passamos" a vida a comprar e vender acções baseados em princípios semelhantes mas de muito maior risco e "ninguém" investe no montado...
Outra razão para que uma dada pessoa faça um investimento para o futuro é que estamos a beneficiar a nossos descendentes directos/próximos (Dawkins/"O gene egoísta" novamente).
O sonho de uma harmonia idílica tornou-se "premente" devido a alguns sustos - extinções de espécies problemáticas, problemas graves de poluição, doenças civilizacionais - stress, etc.
Não sei se haverá pessoas que efectivamente acreditem que tudo é feito no supermercado.

Quanto à questão da economia, diria que o rentável e o não rentável está pouco ligado ao mercado, mas principalmente a distorções deste: pe.e PAC. E logo um coro de protestos se alevanta quanto se fala em desligamento de ajudas à produção e similares.

"Este ponto de vista inquinou transversalmente a sociedade, derivando para um género de reducionismo funcionalista que explica as coisas pelos seus putativos efeitos e não pelo valor histórico dos princípios que as deviam nortear"
Não compreendo este "imperativo ético" de seguir o "valor histórico dos príncipios", ou alternativamente, que valor monetário têm estes princípios?

"Ora quando as politicas ambientais para se imporem se vêm na necessidade de se camuflar sob roupagens da versão vigente da rentabilidade económica instituida, asseverando aos seus destinatários novas oportunidades de mais valias comparativas e promovendo o natural como produto de consumo, algo tem que se considerar intrinsecamente enviesado ao nível dos princípios que as produzem."
Afinal, só gostamos do que conhecemos. Se não tiver valor - pode não ser exactamente monetário - tenderá a desaparecer, ou a ser ignorado.
Creio que as "mais valias marginais do conservacionismo" podem perfeitamente perder o epíteto de marginais. Basta aumentar o consumo, ou melhor USUFRUTO: um trabalho para os técnicos de marketing.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Retomando o nosso diálogo no meu último post, vejo que continua a estar à altura de tal missão de repensar modelos sustentáveis. Com efeito, penso que segue linhas de pensamento correctas nas quais me revejo:

1) A crítica da economia subsidiada e o descrédito da livre iniciativa que implica riscos. O nosso capitalismo não arrisca nada; depende do Estado e dos seus governantes. Daí a facilidade da corrupção entre o poder político e o poder económico.

2) A dicotomia entre o natural rentável e o não-rentável deve ser desmistificada em nome de uma concepção saudável da natureza e de uma economia sustentável.

3) A afirmação do carácter histórico da natureza e o recurso à termodinâmica.

4) A crítica do economicismo vigente e a necessidade de pensar novas alternativas. Esta crítica é também uma crítica da política vigente.

Eis quatro pontos que partilhamos. por isso, lhe disse que confiava em si... :)

Anónimo disse...

Gostei de ver a História recuperada nesta análise critica.
Se bem entendo o seu ponto de vista, não a recupera para lhe fazer a apologia mas para sublinhar que nela existe material de reflexão suficiente para estabelecer principios funcionais razoávelmente seguros na procura da tal sustentabilidade que pela primeira vez encontro claramente explicitada nos termos em que o deve ser - gestão da energia.

Fernando Dias disse...

De facto é vedade que se perdeu a ligação à Terra e aos seus próprios ritmos temporais. Parafraseando Sérgio Godinho, o deserto vai fazer o Manuel vir para aqui mais perto…e assim já pode ajudar melhor o Francisco a cultivar…

Agora falando a sério – daqui a poucas gerações o sul do Tejo é um deserto, não é preciso parafrasear o Engenheiro Lino.

Anónimo disse...

Parabéns pelo blog.
Temas interessantes, bem expostos, análises heterodoxas.
Haveria detalhes a divergir, mas seria mero exercício de retórica ( frequente ) porque se percebe facilmente o valor simbólico na ilustração do fio condutor que sempre tenta fazer uma integração que importa na tradicional dispersão sectorial das perspectivas de análise e de governo em matéria de ambiente.
Uma referência a exigir visitas frequentes.

Fernanda

Blondewithaphd disse...

Manel,
O que eu sei é que os ideários mercantis comandam a vida humana, ponto final. E dentro dessa lógica o ambiente é um produto de consumo. Pior, aliando o sentimento "verde", vertido em moda contemporânea, o que ocorre é que os produtos reciclados, bio e outros que tais são um luxo da classe "verde" e mais caros que os demais parentes menos "verdes". Nem me admiro porque é que me deixei de grandes fundamentalismos ecológicos!

Anónimo disse...

Manuel,

Comentamos no fim da série para lhe dar conta do nosso apreço por este esforço conceptual. A facilidade com que "tranversaliza" os temas do ambiente são uma mais valia para nós que o lemos, pois conduzem-nos para discussões ( animadissimas ...)sobre estes problemas. A ideia sempre presente nos seus textos de que "tudo " é ambiental, faz todo o sentido.
E a dúvida do dia ( tinha que ser...) é que "sentido" sugere que devamos prosseguir socialmente.

Matilde e Amigos

alf disse...

O ser humano tem muitas vertentes, não é só o homme economicus.

Tenho vários amigos que resolveram dedicar-se à "natureza"; uns estão reformados e viem com enorme entusiasmo as suas experiências agrícolas, onde o lucro está longe d eser um objectivo, outros estão no activo e fizeram grandes mudanças na sua vida profissional para realizarem o sonho de viverem numa quinta. Evidentemente que nenhuns pensam nas suas actividades agricolas em termos económicos, sustentam-se do emprego ou da reforma.

Uma tia que vive numa aldeia serrana, e já tinha mais de oitenta anos, respondeu-me o seguinte qd eu lhe perguntei se as peras daquela pereira de que cuidava com tanto carinho eram boas:

"o quê? para comer?? para comer compra-se no supermercado!"

Não era por causa das peras que ela cuidava da árvore...

O meu sogro já tinha perto de oitenta anos qd resolveu plantar um carvalhal. Não faltou quem se risse: essa árvores levam 30 anos a crescer!

Isso não o afectou absolutamente nada. Ele tem pronto tudo o que quer deixar pronto quando morrer; quanto ao resto, age como se vivesse eternamente. Entretanto os carvalhos passaram a receber um subsídio e até se reveleram uma boa decisão economicamente (embora insignificante)

E tem muitas cerejeiras, cujo rendimento não chega para pagar as despesas evidentemente (deve ser preciso ter várias centenas de árvores, ele só tem uma centena. Mas cuida disso tudo com imenso entusiasmo.

Todas estas pessoas entendem perfeitamente aquilo a que o manuel se refere: "...necessidade de encarar o individuo, a sociedade e o território, como uma só unidade de interacção na procura de um sentido."


Poderá esta vontade das pessoas, independente do circuito económico, ser aproveitada para mudar o cenário para onde a economia conduz? Há vida para além da economia, parecem eles dizer...

Anónimo disse...

Podemos ver e abordar o seu texto em duas vertentes.

Uma prende-se com a necessidade que um número crescente de pessoas sente em regressar a um certo contacto com a Natureza.

A outra deriva daquilo que já aqui foi dito e que decorre do lucro e da dependência de formas produtivas da máquina do Estado.

Quanto à primeira, não deixa de ser certo que hoje muitos, esmagados pelo peso da cidade, sonham com o poderem regressar às berças. Com o levantarem-se de manhã, abrirem a janela e verem um nascer do Sol resplandecente, cristalino, límpido e uma miríade de cantos de pássaros.

Se quiser, meu caro, também aqui regredimos. Recordo que, de múltiplias leituras que fiz, outrora se sonhava com os mares do Sul, com as ilhas ali semeadas onde, tal como Gaugin o demonstrou, a alegada harmonia entre o Homem e a Natureza era mais pura.

Hoje, paradoxalmente quando o mundo se tornou mais pequeno graças à tecnologia, já só sonhamos em regressar às beiras, aos alentejos, aos douros ou às aldeias.

É uma ideia romãntica feita e alicerçada nessa necessidade de ligação quase telúrica à terra. Em muitos casos, não passa disso mesmo pois qualquer um dos que assim sonha, se confrontado com uma enxada dela não saberia que fazer e muito menos se sentiria capaz de duma leira fazer uma horta.

Estamos, em certa medida, prontos para esse regresso às berças conquanto não tenhamos de perder muito do conforto material em que nos embalamos na urbe. Tenho visto por aí pessoas a proferirem, ante fotografias idílicas de praias e locais no Oriente, por exemplo, que seriam capazes de lá viver desde que tivessem ligação de alta velocidade à internet!

No mais, e como é evidente, eu posso adorar castanheiros, carvalhos, cerejeiras e sobreiros, mas a sociedade é que não me dá tempo para que aguarde pacientemente pelos frutos que dali hão-de vir.

Hoje quem não tem dinheiro vivo, não existe.
Os terra-tenentes de outrora ver-se-iam hoje como miseráveis a esticar a mão ou a alimentar-se do Rendimento de Inserção Social.

Outros há que aproveitam alguma da sua disponibilidade financeira para tentarem realizar esse sonho de regresso à natureza, desde que devidamente enquadrado pelos poderes públicos sob a forma de subvenção.

Mas é assim em todo o lado, pelo que não há que admirar.

Conheço maduros que apregoam que o liberalismo e a iniciativa privada é a solução miraculosa para tudo e apontam os EUA como suprasumo dessa postura. Esquecem, convenientemente, que não deve existir Estado mais proteccionista em matéria económica que os EUA!

Penso, e estou convencido disso, que apenas uma ruptura absoluta com o tecido civilizacional e social em que assentamos encontrará uma resposta adequada a estas suas/minhas interrogações. Se encontrará o ponto de equilíbrio entre os desideratos "new age" dos que sonham com as berças e a necessidade de não lançar no desconforto da ausência absoluta de bens materiais os restantes, é o que falta saber!

Manuel Rocha disse...

Julgo que o último parágrafo do Quint é uma boa base para apoiar uma resposta ao que me parece ser o denominador comum aos comentários recebidos.

Procura-se um ponto de equilíbrio por entre uma parafernália de “soluções” que estão condicionadas por uma mistificação que nos confunde: a de que vivemos ( modelo Ocidental ) num paradigma viável. Só a eventualidade de ruptura com esse pressuposto, ainda que apenas de um ponto de vista meramente conceptual, assusta de morte a melhor tradição da nossa intelectualidade.

Basicamente somos náufragos que não sabem nadar, comodamente instalados sobre um insuflável velho e cheio de remendos. E em vez de aprendermos a nadar , ou de improvisarmos um remo para alcançar um pedaço qualquer de terra firme, damos o nosso melhor a (re )remendar os remendos, confiantes na salvação milagreira por um navio que ainda nem sequer saiu do estaleiro.

Voltaire orgulhar-se-ia destes Cândidos que nós somos …:))